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terça-feira, março 03, 2009

O mundo está vivo

Eis o que é preciso fazer: partir para o campo, com uma folha de papel e um lápis. Escolher um sítio deserto, num vale encaixado entre as montanhas, sentar-se num rochedo e olhar durante muito tempo à sua volta. E depois, quando se olhou bem, pegar na folha de papel e desenhar com palavras o que se viu. Compreendem, é preciso inscrever a paisagem, peça por peça, sem esquecer nada; longamente, metodicamente, é preciso fazer a carta deste bocado do mundo, indicar o mínimo calhau, o mínimo tufo de erva, fazer o esquema das visões e dos odores, escrever tudo, desenhar tudo. Depois de se acabar, e vir a noite, pode-se regressar a casa. A folha, ali, naquele rectângulo de papel de 21x27, garatujou-se uma parcela da terra. Fez-se o retrato de alguns quilómetros de luz, de ruídos e cheiros. Achataram-se como num postal, muito facilmente. E agora, pertencem-vos, esses quilómetros já não apodrecerão no esquecimento; ficarão, martelados com pequenos sinais, na vossa cabeça até à eternidade. Ou, pelo menos, o tempo que viverem.
J.-M. G. Le Clézio in “A Febre” (conto “O mundo está vivo”)

4 comentários:

solange disse...

Didium
Aí vai um excerto do livro que te dignaste emprestar-me.
Este bocadinho "sabe" bem, porque é o que acontece com as fotos que tiramos, com aquilo que escrevemos, com o que pintamos (não eu, mas quem o faz).
Ainda n li os contos todos, está quase! Este livro de contos n se lê num sopro. É, como o título, febril. Que vidas, que histórias, que personagens!!!
Mistura de loucura, alienação, alguma lucidez também, mas daqueles livros que não são de fácil "digestão". Vou acabar de o ler, até porque cada conto tem o seu quê de estranho, de curioso. As descrições são fantásticas, no verdadeiro sentido do termo.

didium disse...

Ainda bem que estás a gostar!
Hei-de lê-lo!
Tenho cá outro para ti.
Bjo

G. Ludovice disse...

O termómetro não estava em casa, qd o li. Tinha artes o livro de dedilhar a imaginação, como se esta fosse feita de, no entanto, frágeis cordas.
bj

dinamene disse...

Gostei mesmo deste excerto… Poético!
Beijos