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sábado, janeiro 31, 2009

Cortar o tempo



«Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.»

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Meio-dia

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.

Sophia de Mello B. Andresen

terça-feira, janeiro 27, 2009

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil


Baía Azul 2006
Foto:G.Ludovice
EXERCÍCIO DE COMPREENSÃO

Ele traduz uma palavra com cuidados de mãe, por uma outra que ele sabe, mas não eu.
Levaria o resto da vida para perceber onde põe ele as cores numa cidade, se lhe é pedido que a preencha de tons.
É por isso que não lhe entendo as palavras, mesmo que já destrocadas cada vez mais em significados mais simples e prefiro pensar, que se em vez da cidade como exercício para eu lhe compreender as palavras originais, esta passasse a ser um corpo de mulher, eu já conseguiria ler-lhe nos lábios o entendimento que tem do mundo, porque então eu seria essa rua grande cheia de ruas, que receberia as cores.

O percurso

Era imenso, o pensamento,
percorria vias livres
e interditas,
espreitava os atalhos, os becos,
regressava descontente,
pelas palavras não ditas,
de imagens ainda em mente,
de episódios mal contados, mal vividos,
nas histórias acontecidas.
E, prosseguia nessa inglória,
à procura de razões, de justificações.
Essas, foram omitidas,
caladas, consentidas.
Válidas, na altura,
se ditas, explicadas, admitidas!
E o pensamento parou
no silêncio do agora,
despiu-se de preconceitos,
vestiu-se de resignação.
Alterar o vivido?
Inquestionável, fora de controlo,
inalterável.
Prosseguir o momento,
dar-lhe futuro
e, mesmo nos atalhos,
descobrir consciente
a dualidade do viver,
no passado e no presente,
não podendo ser omnipresente,
nem mesmo omnisciente!


maria eduarda

Ler

(...) Ouvir alguém ler em voz alta é muito diferente de ler em silêncio. Quando se lê, pode-se fazer paragens ou saltar as frases: do tempo decidimos nós. Quando é outro a ler é difícil fazer coincidir a nossa atenção com o tempo da sua leitura: a voz ou segue muito rápida ou muito lenta. E ouvir alguém que vai traduzindo de outra língua implica um flutuar de hesitações em volta das palavras, uma margem de indeterminação e de provisioridade. O texto, que quando somos nós a ler é uma coisa que está presente, com a qual somos obrigados a deparar-nos, quando nos é traduzido oralmente é qualquer coisa que está e não está, que não se consegue tocar.(...)
Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante, Col. Mil folhas, Ed. 2002
"Se"
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, janeiro 25, 2009

A visita

Benguela 2006
foto:G.Ludovice

A VISITA
Doce e aflita, para desandar com os mosquitos da injustiça, pousa-lhe devagar junto onde descansa a cabeça bem trançada, no absoluto quase escuro da noite, um pequeno prato com guloseimas em jeito de biscoitos.
A mulher negra arqueia-se em curiosidade e pergunta-lhe, para que quer ela que ela coma na hora da sombra maior, e a mulher branca só resmunga algo, num furor amansado de pergunta que cresceu junto ao corpo.

Onde estavas, que não brincaste comigo? Esperei muito no meu quarto largo, em tardes que se esticavam, enredada em brinquedos só para mim. Por que razão não vieste? Eu tanto queria fazer contigo as bonecas, que eram por ti começadas pelo enchimento de umas tiras de panos, com pano, até se formar mais acima aquela barriga e logo os braços, depois a cabeça no desafio final, com os olhos tesourados também em pano, cosicados no pano do rosto. Duravam menos que as loiras, que apesar de resistentes, já só chegavam se por acaso ao teu bairro, em estado de vítimas de abusada guerra, mutiladas de membros, zarolhas no seu azul de olhos de abrir e fechar, com a cabeleira amadoramente recortada, meias esfarrapadas a precisarem dos teus panos coloridos nos seus troncos cor-de-rosa já esfolados, sem nome nem aquele cheiro de loja, mas com aquele perfume dos usos.Eram tão oxigenadas de natureza, que até para mim se tornava complicado criar uma árvore genealógica, em que elas pudessem ser minhas filhas.

Um dia trouxe nas minhas elaborações femininas, um alemão bem loiro que vivia num submarino num filme de guerra e passou a ser o pai delas.
Todos os natais lá vinham, com mais uma nórdica deslavada importada para os trópicos e que por destino fácil de explicar, ia parar não à tua, mas à minha árvore ainda com pistas de resina, vestida ricamente de verdes agulhas, de onde pendiam ora anjos, ora sinos e bolas, onde me podia espreitar em deformação nas suas curvaturas brilhantes.Dos teus anseios, nada me chegou inteiro.

Em que musseque saltitavas com os miúdos da mesma pobreza, por entre as poças de água da chuva, que não te pude oferecer nem uma nova boneca loira, ainda de pestanejo móvel em condições, com que inventava sozinha lares na minha casa grande?

Haveríamos juntas de arranjar uma solução para que fossem tuas filhas também, como as tuas nascidas de pano, minha descendência.
Na minha casa existiam janelas de vidro do tamanho de paredes inteiras, mas nunca te vi passar sempre que me empoleirei para cheirar o mundo e, por isso, só me visitavas a imaginação através dos sons nocturnos dos tambores em noites de festa.Agora temos de pôr no pano do coração, os mimos que não destrocámos na meninice.
A mulher negra fica só de olhos cogitantes, suspensa na delícia de outra bolacha enchapelada de creme, no exagero da branca já de carunchos como ela, a querer não perder mais do que já perdeu. 2007

sábado, janeiro 24, 2009

Ser Angolano

Ser angolano é meu fado,é meu castigo.
Branco eu sou e pois já não consigo
mudar jamais de cor ou condição...
Mas, será que tem cor o coração?

Ser africano não é questão de cor,
é sentimento, vocação, talvez amor.
Não é questão nem mesmo de bandeiras,
de língua, de costumes ou maneiras...

A questão é de dentro, é sentimento,
e nas parecenças de outras terras,
longe das disputas e das guerras,
encontro na distância esquecimento!

Neves e Sousa (Pintor e Poeta Angolano)

A Barbie do Cuíto

Uma tarde apareceu no Centro Médico um português [...] a distribuir brinquedos. Viu a menina e estendeu-lhe uma boneca. A menina segurou a boneca com cuidado. Achava-a estranha, muito magra, demasiado pálida, com uma cabeleira escorrida e loura, a lembrar uma espiga de milho bem madura. Algo nela lhe parecia ainda mais estranho: tinha duas pernas.


José Eduardo Agualusa

«A vida num sopro» de José R. dos Santos

“Portugal, anos 30.
Salazar acabou de ascender ao poder e, com mão de ferro, vai impondo a ordem no país. Portugal muda de vida. As contas públicas são equilibradas, Beatriz Costa anima o Parque Mayer, a PVDE cala a oposição.
Luís é um estudante idealista que se cruza no liceu de Bragança com os olhos cor de mel de Amélia. O amor entre os dois vai, porém, ser duramente posto à prova por três acontecimentos que os ultrapassam: a oposição da mãe da rapariga, um assassinato inesperado e a guerra civil de Espanha.
Através da história de uma paixão que desafia os valores tradicionais do Portugal conservador, este fascinante romance transporta-nos ao fogo dos anos em que se forjou o Estado Novo.
Com A Vida Num Sopro, José Rodrigues dos Santos confirma a sua mestria e o lugar que já ocupa nas letras portuguesas.”


(na contracapa do romance)


Fantástico!!! Por tudo. Porque nos transporta para outra época, dando-nos a conhecer, ao pormenor, os costumes de então, porque nos entusiasma o amor que nasce entre aqueles jovens, porque participamos, sem lá termos estado, na guerra civil de Espanha, porque, sem nos darmos conta, um pouco mais que a meio do livro, estamos sem fôlego, não querendo acreditar no que está a acontecer e não conseguimos deixar de ler. Lê-se, verdadeiramente, num sopro! Acho que nunca me tinha acontecido o que este livro me levou a fazer. A verdade é que não me contive. Tive de ir espreitar as últimas páginas, antes do epílogo. Se gostei de todos os livros do autor, este, muito diferente dos últimos, com algumas semelhanças ao romance “A Filha do Capitão”, deixou-me emocionada e com a certeza de que quero ler todos os livros que JRS irá escrever.

Meninices

Em garota,
tive um motorista de táxi,
um miúdo alegre, brincalhão,
que me chamava, por vezes,
para as brincadeiras de então.
A tampa de uma panela,
um guiador de automóvel,
o chão do pátio, o assento,
a sua voz, no intento,
do ruído da viatura,
a estacionar,
ou em movimento.
Eu pedia permissão,
indicava o destino,
e atento,
o meu motorista
sem hesitação,
levava-me ao mundo da fantasia,
à viagem da ilusão.
Incluía-me ele, nessa tropelia,
nessa felicidade,
em crianças em idade,
felizes, no seio da família.
Nossa mãe passava,
na sua azáfama diária,
e um sorriso lançava
aos filhos em harmonia.

maria eduarda

sexta-feira, janeiro 23, 2009

O "Diário" de Sebastião da Gama tem 60 anos


«Janeiro, 11 (de 1949) - Para começar, o metodólogo falou connosco durante uma hora. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e que vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes: deixá-los ser: "porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé."
Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: "O que eu quero principalmente é que vivam felizes"

Sebastião da Gama, "Diário"

quinta-feira, janeiro 22, 2009

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil,

Não existe especialização de habilidades se as mãos estiverem agarradas a uma contorsão de barriga, que perdure tanto quanto a nossa existência.
Maslow foi o psicólogo do óbvio, mas não obstante o óbvio parecer carecer de valor por ser vulgar, a constatação de que decerto não haveria cultura, se constantemente tivessemos uma forte dor de cabeça ou se simplesmente a insónia passasse a ser um estado presente na nossa vida como uma faca num porco a sangrar, tal adversidade faria recuar o desprezo que geralmente temos pelo mais óbvio.

Fazer sentido

Quando o meu rosto
se traduzir num mapa,
recheado de linhas,
quero saber-te aqui,
e, olhando-me, conheceres
nas linhas minhas,
o caminho percorrido,
o atalho escolhido,
as regras transgredidas,
e o amor por ti sentido.
Quero que a ternura impere,
cimentada em uníssono,
neste nosso caminhar,
na luta par a par,
travada contra tempos,
que não nos davam vitória!
Quero olhar para ti e,
em cada linha do rosto teu,
ver reflectido um esboço meu,
da viagem percorrida, unida,
sempre,sem despedida!
Só assim a luta faz sentido,
porque assim foi nosso, o vivido!

maria.eduarda

O percurso do estar feliz, estadia em movimento?

Quando chego a Nathal, pergunto a mim próprio o que é que faço em Nathal, chego a Viena e pergunto a mim próprio o que é que faço em Viena.
E a verdade é que apenas sou feliz quando estou sentado no carro entre o lugar que acabei de deixar e o outro para onde me dirijo, apenas sou feliz no carro e durante a viagem, mas sou o mais o infeliz recém-chegado que se pode imaginar, onde quer que chegue, logo que chego sou infeliz. Sou daquelas pessoas que no fundo não suportam nenhum lugar do mundo e só são felizes entre os lugares de que partiram e para onde se dirigem. Ainda há alguns anos eu acreditava que uma tal fatalidade mórbida teria de conduzir forçosamente, dentro de pouco tempo, a uma loucura total, mas não me conduziu a essa loucura total, preservou-me efectivamente de uma tal loucura, de que tive toda a minha vida o maior pavor.
Thomas Bernhard, O sobrinho de Wittgenstein, uma amizade, Assírio e Alvim, 2000

terça-feira, janeiro 20, 2009

Em Louvor das Crianças

Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
Eugénio de Andrade

segunda-feira, janeiro 19, 2009


«A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos.»
Gandhi

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Libertação

Não batas a porta,
fecha-a suavemente,
estou aqui, e importa
ouvir o silêncio premente.

A paz pretendo atingir,
no sossego da palavra,
na ausência a surgir,
onde já não sou escrava.

Liberta-me, vou partir,
deixo-te o afecto antigo,
hoje, o desejo é sentir
o abandono do abrigo.

Quero ir, pretendo ser
alguém que dentro de mim,
reclama em aparecer,
é chegada a hora, enfim.

Deixo a porta fechada,
não há intenção de a abrir,
vou por uma qualquer estrada,
para por fim emergir.

maria eduarda

A Evolução Opaca do Ser

Muitas vezes os seres são claros e translúcidos por serem primários e, à medida que vão evoluindo, vão-se tornando opacos. Pensemos. Talvez seja isto: à medida que mais evoluindo vamos, é que vão sendo precisos olhos mais penetrantes para se poder distinguir a qualidade de um ser. Então não será só à luz do sol que se deverá considerar a limpidez ou a translucidez do corpo de um ser, mas à luz de outros princípios luminosos. (...) Aqui a razão precisava de ter evoluído paralelamente aos olhos, ora os nossos olhos vão de encontro aos seres como de encontro a um muro.

Ana Hatherly, in "O Mestre"

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil


Não se consegue achar o pensamento sem que em simultâneo se deseje que entre as ideias da humanidade haja uma espécie de cola, de modo a que se não disperse para sempre a vontade da partilha daquilo que é essencial, o estarmos todos no mesmo solavanco do universo.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Urdidura

Indubitavelmente,
sou mais um ponto neste tecido,
urdido paciente e vagarosamente
por quem se insinua, e me conduz
no fio da trama, que seduz.
Neste complexo ladrilho,
o tapete ganha forma, brilho.
Eventualmente,
a tecedeira ignorou certos momentos,
e, batoteira, teceu outros pontos, eventos,
numa errada carreira.
Possivelmente,
serei eu o farol que ilumina
a textura que se elimina,
o ajuste dos elementos.
Naturalmente,
o reparo consertado
afigura-se num ângulo determinado,
real desenho adaptado
à vivência das figuras
que preenchem a tapeçaria,
sem as quais eu não viveria.


maria eduarda
"A humanidade não pode libertar-se da violência senão por meio da não-violência."
Mahatma Gandhi

A Alma é Exterior

A alma, ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia tomar cor. Há seres cuja alma é uma contínua exalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda - imensa, dorida, frenética. Há-os cuja alma é de uma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. Assim é que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus.
Raul Brandão, in "Húmus"

segunda-feira, janeiro 12, 2009

A Paz


A paz
é uma pomba que voa.
É um casal
de namorados.
São os pardais
de Lisboa
que fazem ninho
nos telhados.

É o riacho
de mansinho
que saltita
nas pedras morenas
e toda a calma
do caminho
com árvores
altas e serenas.

A paz é o livro
que ensina.
É uma vela
em alto mar
e é o cabelo
da menina
que o vento
conseguiu soltar.

E é o trabalho,
o pão, a mesa,
a seara de trigo,
ou de milho,
e perto
da lâmpada acesa
a mãe que embala
o seu filho.
Sidónio Muralha,in Verso aqui, Verso acolá

A Racionalidade Irracional


Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, que mantém a vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.


Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo.


E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias.

José Saramago, in 'Diálogos com José Saramago'
"Existem apenas dois modos de viver a vida: um é como se nada fosse milagre; o outro é como se tudo fosse um milagre... ...Eu acredito no último."
(Albert Einstein )

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Educar é AMAR

Há pessoas que nascem com Dons…
Para escrever, para pintar, para ensinar, para curar, para criar…
Heranças genéticas intrínsecas a cada indivíduo?!

Gostos, tendências, Dons…
Que existem para tudo o que se possa imaginar ou sonhar.

O mais provável é que a cada um de nós caiba, no mínimo, um Dom, que se for desabrochado poderá revelar-se em algo extraordinário e único. Diria mesmo Divino!!???

Somos insubstituíveis…

A Educação e o Amor contribuem para a descoberta dessa riqueza interior que nos pertence (a todos) e, muitas vezes, são a única forma de desenvolvermos esse Dom individual que é uma riqueza de toda a humanidade.

Fugacidades

No recanto enfeitado,
onde agora tu me aguardas
com quimeras de outrora,
em roupagens de agora.
Vestida a preceito,
aguardo o sinal
da alucinação passada,
mergulhada na descoberta,
vivida, inventada, reinventada...
Éramos nós o tempo, a hora,
a entrega, o furor, o sonho!
Camadas de vidas agora, de momentos,
de outras roupas vestidas,
de olhares cúmplices, espelhados,
de linhas no rosto adquiridas!
É tempo de outro tempo,
que traz à memória
o fulgor da paixão,
nas vestes de Verão,
neste Inverno da história!

maria eduarda


Invernos

Arvoredo despido,
galhos retorcidos,
quebradiços,
entoam toadas sazonais,
enchem de sonoridades
os quintais.
Rejeitam o frio
que lhes tolhe os braços,
que querem abertos
às aves matinais.
Reclamam o verde,
a cama dos pardais,
e azáfamas demais.
Mas, a luz que clareou,
por instantes breves,
entre os galhos segredou,
que o Inverno já chegou.

maria eduarda

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Benguela 2006
foto:G.Ludovice
Existem prazeres, como a Escrita, que só merecem existir se não se sabe sem eles viver, como pensou Rilke.
Não se ganham de outro modo, são quase um modo de estar ou uma necessidade terrivelmente profunda.
Os que gostam de escrever sobreviveram a todas as más metodologias, aos programas escolares estúpidos e a todas as grandes políticas e pedagogias institucionais insensatas... e até à censura.

Escrevem porque não podem deixar de o fazer, não têm outra motivação.
Mas se existe alguém que mostre às crianças, a linguagem como sendo um bote nas muitas águas da vida, provavelmente dá-lhes uma chave, dessas que parecem ser apenas mais uma, mas são únicas e abrem mundos que como um tecido sustenta o balançar do mundo.

No entanto, lá no fundo de um quintal alguém inventa uma história, sem outro impulso que a própria vida.

quarta-feira, janeiro 07, 2009

Escrita a metro


Importam-se de lhes abrir as portas da imaginação,
Do sonho na narração?
Importam-se de os deixar escrever por linhas tortas?
Não lhes peçam mais textos a metro, sem emoção…
Composições à medida, sem invenção!

João, 9 anos, e Mariana, 10 anos, levaram para casa
uma composição para fazer, um texto de 15 linhas alinhadinhas…
Ao começarem a tarefa, o João alargava a letra, naturalmente pequena,
para escrever menos… Em 5 linhas diria tudo o que sabia sobre o tema!
A Mariana, que até gostava de escrever,
e podia mesmo encher duas páginas numa composição,
inventava frases, desinteressada, só para caberem,
certinhas, nas 15 linhas…
Não escrevia com entusiasmo, mas à medida…
Escrita a metro!

Importam-se de lhes abrir as portas da imaginação,
Do sonho na narração?
Como se pode pedir que alguém escreva ideias e descrições
em linhas direitinhas, contadinhas…
Será essa a maneira de entusiasmar pela escrita???
Contem-lhes histórias, mostrem-lhes livros,
seleccionem poemas para lhes ler!…
Pode dizer-se tanto em tão poucas palavras…
Ou nada, em muitas linhas!



Dinamene

Encolher de ombros

Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.(...)

Fernando Pessoa

Desalento

Os sapatos levam-me por aí,
mas hoje doem-me os pés.
Desculpa em mim,não saí,
prisioneira da força das marés.

Na concha continuo, neste cansaço
que me inunda, me envolve.
Abraça-me como o sargaço
que não descola, não se move.

Aprisionada, envolta em braços,
não quero espreitar lá fora.
A escuridão estreita os laços,
e quero aquiescer na demora.

Há dias que acordam assim,
sem apelo, sem vontade,
como algo desprovido ou afim,
que me tira toda a sanidade.

Talvez o sol me ilumine,
se hoje a luz me presentear,
ou a pouca vontade me fulmine,
de um não querer, um apartar.

Queria poder esbracejar.
Pretendo o cansaço esquartejar.

maria eduarda

terça-feira, janeiro 06, 2009

Sobre o Tempo..

Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas: “O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; omnipresente, o tempo está em tudo: existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água em que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo o que nos rodeia; rico não é o homem que colecciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há-de dar o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há-de colocar o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há-de começar as coisas pelo tecto: começar as coisas pelo tecto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que exorbita no uso de tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia: mas fica a salvo do malogro e livre da decepção que alcançar aquele equilíbrio.
Raduan Nassar (in: lavoura arcaica)

FRUTOS

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, janeiro 05, 2009

A Memória é um Silêncio que Espera



O património do silêncio. Os livros acumulam-se pela casa. Cobrem as paredes, enchem as prateleiras dos armários. Aguardam-nos calados com suas páginas apertadas onde o pó e a humidade se infiltram. Disciplinados, exibem apenas o seu dorso curvo coberto de pele, ou então magro, estreito, de papel. A memória é um silêncio que espera, uma provação da paciência.

Ana Hatherly, in 'Tisanas'

domingo, janeiro 04, 2009

Histórias Escritas na Cara

"Histórias escritas na cara com humor e com ternura"

Este livro de Isabel Zambujal é especial, para todas as idades.
«As histórias preferidas da Clara eram as que estavam escritas no rosto da avó: por linhas curtas ou compridas, pequenos sinais instalados na ponta do nariz ou pela cicatriz que dava à Dona Joaquina um ar de eterna traquinas. As rugas das boas memórias faziam-na sorrir. As outras, que contavam histórias tristes, eram acariciadas com creme para ficarem serenas. Mas havia uma ruga zangada que a avó Joaquina não queria que desaparecesse... »

sábado, janeiro 03, 2009

Infâncias

Continuo à espera!
O vento não me levou,
o cavalo alado não chegou
na nuvem branca de algodão.
Não fui com as aves,
embora a porta estivesse aberta.
Escutei os sons da noite,
mas ninguém me chamou.
De mansinho fechei a porta,
e relembrei outros tempos
da meninice, em tropelia,
ao lado do companheiro de então,
atentos ao jogo das caricas, no chão.
A porta fechada passou a estar,
mas, porque o sono traz o sonho,
abri a janela de par em par!
maria eduarda

As palavras, como as abelhas, têm mel e ferrão.

sexta-feira, janeiro 02, 2009

TERRE DES HOMMES


À Antoine de Saint-Exupéry, aviateur, journaliste, héros... qui nous a écrit de beaux livres.

On va dire tout
aux étoiles d'Exupéry.
Mais il faut se taire
devant les hommes
perdus dans le désert
de leur orgueil.

On va courir
devant les fleurs,
mais pas si
on écoute les bruits
de la guerre.

Il faut beaucoup de courage,
beaucoup d'amour,
pour parler aux hommes.

Avec les fleurs
on peut parler d'amour.
En regardant les étoiles,
on peut causer
sur la tendresse cachée au coeur pur
du Petit Prince.

On voit que,
sans retard,
le renard viendra.
N'oubliez pas les jardins,
la rose unique,
les fontaines au désert,
les champs du blé doré!

Theresa Catharina de Góes Campos Paris-France, le 8 septembre 1960.
Já há uns anos, num bar, ouvi um conto que me tocou muito, narrado por um Contador de Histórias, e com muita pena minha não o encontrei escrito em lado nenhum…Por isso, passo a resumi-lo, por palavras minhas:
Uma vez um viajante dirigia-se a uma pequena Vila que queria visitar, mas antes parou no cemitério que se situava a uns metros desta… Acreditava que para conhecer bem os vivos deveria também conhecer a forma como tratavam os seus mortos…
Para seu espanto, ao olhar as lápides, todas tinham um número de anos reduzido…
José Manuel Paiva, 2 Anos,
Deolinda Silva, 7 anos,
Maria Rodrigues, 5 anos,
… 4 anos,
… 10 anos,
…3 anos…
Perante isto, o homem começou a chorar até que alguém o interpelou:
- Porque chora? Tem aqui alguém conhecido?
- O que aconteceu aqui? Que desgraça?!!! Como há tantas crianças mortas?
- Ah! É isso?!... Pois na nossa Vila temos todos um caderno, desde o momento do nosso nascimento, onde apenas são apontados os momentos felizes que vivemos e quanto duram….
As primeiras palavras, 17 minutos.
Os primeiros passos… 7 minutos.
O primeiro beijo… 1 minuto.
O nascimento do primeiro filho… 1 hora e 30 minutos.
Um livro… 2 horas.
Uma música… 15 minutos.
Um jantar especial… 3 horas.
….
E, no dia em que morremos, é feita a soma de todos os minutos e horas felizes que vivemos e inscrita na lápide.
Porque acreditamos que o que realmente importa é aquilo que de bom sentimos, partilhamos e vivemos enquanto seres humanos que somos.