Páginas

Mostrar mensagens com a etiqueta Le Clézio. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Le Clézio. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, março 03, 2009

O mundo está vivo

Eis o que é preciso fazer: partir para o campo, com uma folha de papel e um lápis. Escolher um sítio deserto, num vale encaixado entre as montanhas, sentar-se num rochedo e olhar durante muito tempo à sua volta. E depois, quando se olhou bem, pegar na folha de papel e desenhar com palavras o que se viu. Compreendem, é preciso inscrever a paisagem, peça por peça, sem esquecer nada; longamente, metodicamente, é preciso fazer a carta deste bocado do mundo, indicar o mínimo calhau, o mínimo tufo de erva, fazer o esquema das visões e dos odores, escrever tudo, desenhar tudo. Depois de se acabar, e vir a noite, pode-se regressar a casa. A folha, ali, naquele rectângulo de papel de 21x27, garatujou-se uma parcela da terra. Fez-se o retrato de alguns quilómetros de luz, de ruídos e cheiros. Achataram-se como num postal, muito facilmente. E agora, pertencem-vos, esses quilómetros já não apodrecerão no esquecimento; ficarão, martelados com pequenos sinais, na vossa cabeça até à eternidade. Ou, pelo menos, o tempo que viverem.
J.-M. G. Le Clézio in “A Febre” (conto “O mundo está vivo”)

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

O absoluto do ser

- Deus não é bom?
- Não, para falar com propriedade, Deus não é bom: é. Bom, mau, são pobres palavras que se aplicam a um conjunto de regras respeitantes a alguns pormenores da nossa vida material. Porque é que Deus seria limitado pelas nossas pobres palavras e valores? Não, Deus não é bom. É mais do que isso. É a forma mais rica, mais completa, mais poderosa do ser, de qualquer maneira. Torna concreta a abstracção mesmo da forma do ser. E penso que o «envisagement» do ser não podia ser possível se Deus não lhe tivesse dado anteriormente o seu estado. Deus é a criação. É pois um princípio inextinguível, não orientado, a própria vida. Lembrem-se das palavras: «Eu sou Aquele que sou». Nenhuma outra palavra humana compreendeu e relatou melhor a forma divina. Intemporal, não, nem sequer intemporal e infinita. O princípio. O facto de que há qualquer coisa no lugar onde não havia nada.
- Mas então, Deus não tem necessidade...
- E até mesmo para lá de toda a expressão. Se quiser, eu sou Deus. Não há dúvida a sustentar, pergunta a fazer. Você existe. Portanto é Deus. Você não pode existir de outro modo. Se você não fosse Deus, não existiria.
- Um panteísmo, de certa maneira?
- Não, porque não se trata de louvar Deus em todas as coisas. Deus é exterior, e se eu lhe dizia que você é Deus, que eu sou Deus, não era para lhe dar a ideia que, segundo eu, Deus é uma espécie de corpo no interior do qual nós vivemos. Não, eu queria apenas insinuar uma espécie de analogia entre as duas palavras da frase, agir no ser determinando-o, por Deus. Sendo o Ser de certa maneira uma dimensão própria, tão relativa mas tão real como o tempo e o espaço. E Deus sendo o absoluto desta dimensão, como o infinito é o absoluto do espaço, e o eterno o absoluto do tempo. De facto, o absoluto do Ser é também o absoluto do espaço e o absoluto do tempo. Eis porque Deus é neste ponto inimaginável para os pobres espíritos dos homens.
Le Clézio, in "A Febre" (conto «Martin»)