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sexta-feira, fevereiro 27, 2009

O absoluto do ser

- Deus não é bom?
- Não, para falar com propriedade, Deus não é bom: é. Bom, mau, são pobres palavras que se aplicam a um conjunto de regras respeitantes a alguns pormenores da nossa vida material. Porque é que Deus seria limitado pelas nossas pobres palavras e valores? Não, Deus não é bom. É mais do que isso. É a forma mais rica, mais completa, mais poderosa do ser, de qualquer maneira. Torna concreta a abstracção mesmo da forma do ser. E penso que o «envisagement» do ser não podia ser possível se Deus não lhe tivesse dado anteriormente o seu estado. Deus é a criação. É pois um princípio inextinguível, não orientado, a própria vida. Lembrem-se das palavras: «Eu sou Aquele que sou». Nenhuma outra palavra humana compreendeu e relatou melhor a forma divina. Intemporal, não, nem sequer intemporal e infinita. O princípio. O facto de que há qualquer coisa no lugar onde não havia nada.
- Mas então, Deus não tem necessidade...
- E até mesmo para lá de toda a expressão. Se quiser, eu sou Deus. Não há dúvida a sustentar, pergunta a fazer. Você existe. Portanto é Deus. Você não pode existir de outro modo. Se você não fosse Deus, não existiria.
- Um panteísmo, de certa maneira?
- Não, porque não se trata de louvar Deus em todas as coisas. Deus é exterior, e se eu lhe dizia que você é Deus, que eu sou Deus, não era para lhe dar a ideia que, segundo eu, Deus é uma espécie de corpo no interior do qual nós vivemos. Não, eu queria apenas insinuar uma espécie de analogia entre as duas palavras da frase, agir no ser determinando-o, por Deus. Sendo o Ser de certa maneira uma dimensão própria, tão relativa mas tão real como o tempo e o espaço. E Deus sendo o absoluto desta dimensão, como o infinito é o absoluto do espaço, e o eterno o absoluto do tempo. De facto, o absoluto do Ser é também o absoluto do espaço e o absoluto do tempo. Eis porque Deus é neste ponto inimaginável para os pobres espíritos dos homens.
Le Clézio, in "A Febre" (conto «Martin»)

1 comentário:

solange disse...

Em A Febre (de 1967), Le Clézio compõe nove histórias. A riqueza da linguagem e o pendor quase alucinatório das suas narrativas fazem de Jean-Marie Gustave Le Clézio um dos mais importantes autores franceses da sua geração. Foi o vencedor do prémio Nobel da Literatura em 2008.

Palavras do autor:
«Estas nove histórias de pequena loucura são ficcionais; e no entanto não foram inventadas. O seu tema foi tirado de uma experiência familiar. Todos os dias, perdemos a cabeça por causa de um pouco de temperatura, de uma dor de dentes, de uma tontura passageira. Enervamo-nos. Experimentamos prazer. Embriagamo-nos. Nada disso dura muito tempo, mas é o bastante. A nossa pele, os nossos olhos, os ouvidos e os narizes acumulam todos os dias milhões de sensações, que nunca mais se esquecem. Somos verdadeiros vulcões.»
A história de Martin é curiosa. Trata-se de uma criança de 12 anos, sobredotada!!!