Entrava-se lá para os fundos, por um corredor entre um prédio e a casa. Na sala composta por quatro ou cinco mesas compridas em madeira, os alunos sentavam-se em bancos corridos. Em cada uma delas morava uma classe, da primeira à quarta. Todas as classes tinham a mesma professora que ensinava, dirigia, controlava, no mesmo espaço e em simultâneo todas elas. Havia respeito, também algum medo. A professora ensinava em sua casa, era portanto uma escola particular. À hora do recreio, saía-se ao pátio onde saltitavam os seus gatos. Havia tempo, para se comer o lanche trazido e para se brincar um pouco à macaca, às escondidas... Quando a professora chamava, as crianças entravam sem ser a mastigar. Sabiam que se passassem uma determinada porta estariam na intimidade do seu lar, por isso ficavam-se pela sala grande e pelo pátio. A única casa de banho da casa era no quintal, quando chovia tinham que ir a correr. Não a podiam deixar suja, porque seriam responsabilizados de forma séria. Quando um aluno da última classe não sabia alguma matéria básica, um miúdo das classes anteriores tinha de responder e o outro era então confrontado com a sua falta de estudo perante a sabedoria do mais novato, ficava enxovalhado no seu orgulho de mais velho e o vencedor da resposta ganhava brilhos nos olhos da professora. Todos os erros eram uma declaração de guerra por parte da professora, que armada das palmatórias de vários tamanhos segundo as palmas dos garotos, desencadeava a matança à ignorância de forma muito física. Um erro de ortografia num ditado, correspondia a uma palmatoada. Uma conta enganada, outra. Entre as suas armas estavam também as puxadelas de orelhas de preferência com vinco de unha, os abanões de bochechas, os deveres carregados para casa, a folha de reprimenda escrita no caderno diário para o pai assinar, a não ida ao recreio e uma muito especial para os casos mais graves de indisciplina ou preguiça. A nossa professora tinha em casa uns chifres de impala. Guardava-os lá numa parte da sala. Estavam munidos com um fio, que servia para os segurar à cabeça de algum menino. Então, escolhia um outro miúdo para ir passear com ele ao café Tirol, que ficava em frente. Ia para a janela, para verificar os trajectos e o cumprimento das ordens. Uma vez calhou-me. Sob pena de ser castigada também, acompanhei um colega com uns chifres de impala na testa. Era impossível a rebelião, havia sempre um possível tormento maior para os dois. A nossa professora primária era terrível, mas aprendíamos e todos passávamos nos difíceis exames nacionais, porque não aprender até chegava mesmo a doer. Nesta singular escola, andavam os alunos mais cábulas, desinteressados, preguiçosos, rebeldes, mal-educados e aqueles que por via familiar iam lá parar com esses irmãos que professavam o desespero dos pais. Entrei aos cinco anos para este tipo de ensino, por causa do meu irmão que queria ser um bicho cego, surdo e mudo para não ter de estudar. Um dia não me apeteceu fazer bem os deveres para casa, a minha cópia parecia escrita por um míope, as letras ocupavam cinco e seis linhas de uma só vez. Na outra manhã lá estava a palmatória elevada no ar, pela primeira e última vez dirigida às minhas mãos pequeninas da primeira classe. O meu olhar aterrorizado salvou-me do impacto. A professora perdoou-me porque só encostou a face do instrumento às linhas do meu destino, depois só ralhou infinitamente. A professora tinha um marido bonzinho. Tinha perdido um olho e usava um pano preto, a tapar a assustadora cavidade. Às vezes, ela pedia-lhe ajuda para fazer um ditado. Ele dizia vagarosamente todas as palavras e ela deitava-lhe um vociferar de zanga. A professora também cuidava de nós do lado de fora da escola, enquanto esperávamos os nossos pais no passeio, perto das janelas da sua casa. Num Carnaval, deitámos serpentinas para dentro de um carro estacionado. A nossa professora viu tudo, desde a sua cortina afastada. Obrigou-nos a esperar pelo dono do veículo, a pedir-lhe desculpa e a apanhar todos os papelinhos com que tão traquinamente nos tínhamos divertido. Era uma professora muito atenta.Os nossos pais gostavam, agradeciam-lhe todos os castigos, menos quando falhava a palmatória e apanhava o pulso do aluno ou então tinham de lhe pedir, por favor ao meu filho não lhe puxe as orelhas porque sofre de otite, no resto está à vontade, aplique-lhe os curativos… Nós sabíamos que os nossos pais, tinham-na envolta num grande respeito, porque todos aprendíamos. Na modesta casinha verde, era a nossa primeira escola de verdade, lá viviam também a nossa professora, o seu marido bonzinho com o pano preto na falta do seu olho, e os seus gatos muito educados. Um dia eles morreram e ficámos todos tristes.Muitos de nós terminámos a primária, numa escola oficial onde já não batiam nem ralhavam, mas nós já não gostávamos tanto da professora. Já não era nossa.
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quarta-feira, fevereiro 25, 2009
Mambo 19
Entrava-se lá para os fundos, por um corredor entre um prédio e a casa. Na sala composta por quatro ou cinco mesas compridas em madeira, os alunos sentavam-se em bancos corridos. Em cada uma delas morava uma classe, da primeira à quarta. Todas as classes tinham a mesma professora que ensinava, dirigia, controlava, no mesmo espaço e em simultâneo todas elas. Havia respeito, também algum medo. A professora ensinava em sua casa, era portanto uma escola particular. À hora do recreio, saía-se ao pátio onde saltitavam os seus gatos. Havia tempo, para se comer o lanche trazido e para se brincar um pouco à macaca, às escondidas... Quando a professora chamava, as crianças entravam sem ser a mastigar. Sabiam que se passassem uma determinada porta estariam na intimidade do seu lar, por isso ficavam-se pela sala grande e pelo pátio. A única casa de banho da casa era no quintal, quando chovia tinham que ir a correr. Não a podiam deixar suja, porque seriam responsabilizados de forma séria. Quando um aluno da última classe não sabia alguma matéria básica, um miúdo das classes anteriores tinha de responder e o outro era então confrontado com a sua falta de estudo perante a sabedoria do mais novato, ficava enxovalhado no seu orgulho de mais velho e o vencedor da resposta ganhava brilhos nos olhos da professora. Todos os erros eram uma declaração de guerra por parte da professora, que armada das palmatórias de vários tamanhos segundo as palmas dos garotos, desencadeava a matança à ignorância de forma muito física. Um erro de ortografia num ditado, correspondia a uma palmatoada. Uma conta enganada, outra. Entre as suas armas estavam também as puxadelas de orelhas de preferência com vinco de unha, os abanões de bochechas, os deveres carregados para casa, a folha de reprimenda escrita no caderno diário para o pai assinar, a não ida ao recreio e uma muito especial para os casos mais graves de indisciplina ou preguiça. A nossa professora tinha em casa uns chifres de impala. Guardava-os lá numa parte da sala. Estavam munidos com um fio, que servia para os segurar à cabeça de algum menino. Então, escolhia um outro miúdo para ir passear com ele ao café Tirol, que ficava em frente. Ia para a janela, para verificar os trajectos e o cumprimento das ordens. Uma vez calhou-me. Sob pena de ser castigada também, acompanhei um colega com uns chifres de impala na testa. Era impossível a rebelião, havia sempre um possível tormento maior para os dois. A nossa professora primária era terrível, mas aprendíamos e todos passávamos nos difíceis exames nacionais, porque não aprender até chegava mesmo a doer. Nesta singular escola, andavam os alunos mais cábulas, desinteressados, preguiçosos, rebeldes, mal-educados e aqueles que por via familiar iam lá parar com esses irmãos que professavam o desespero dos pais. Entrei aos cinco anos para este tipo de ensino, por causa do meu irmão que queria ser um bicho cego, surdo e mudo para não ter de estudar. Um dia não me apeteceu fazer bem os deveres para casa, a minha cópia parecia escrita por um míope, as letras ocupavam cinco e seis linhas de uma só vez. Na outra manhã lá estava a palmatória elevada no ar, pela primeira e última vez dirigida às minhas mãos pequeninas da primeira classe. O meu olhar aterrorizado salvou-me do impacto. A professora perdoou-me porque só encostou a face do instrumento às linhas do meu destino, depois só ralhou infinitamente. A professora tinha um marido bonzinho. Tinha perdido um olho e usava um pano preto, a tapar a assustadora cavidade. Às vezes, ela pedia-lhe ajuda para fazer um ditado. Ele dizia vagarosamente todas as palavras e ela deitava-lhe um vociferar de zanga. A professora também cuidava de nós do lado de fora da escola, enquanto esperávamos os nossos pais no passeio, perto das janelas da sua casa. Num Carnaval, deitámos serpentinas para dentro de um carro estacionado. A nossa professora viu tudo, desde a sua cortina afastada. Obrigou-nos a esperar pelo dono do veículo, a pedir-lhe desculpa e a apanhar todos os papelinhos com que tão traquinamente nos tínhamos divertido. Era uma professora muito atenta.Os nossos pais gostavam, agradeciam-lhe todos os castigos, menos quando falhava a palmatória e apanhava o pulso do aluno ou então tinham de lhe pedir, por favor ao meu filho não lhe puxe as orelhas porque sofre de otite, no resto está à vontade, aplique-lhe os curativos… Nós sabíamos que os nossos pais, tinham-na envolta num grande respeito, porque todos aprendíamos. Na modesta casinha verde, era a nossa primeira escola de verdade, lá viviam também a nossa professora, o seu marido bonzinho com o pano preto na falta do seu olho, e os seus gatos muito educados. Um dia eles morreram e ficámos todos tristes.Muitos de nós terminámos a primária, numa escola oficial onde já não batiam nem ralhavam, mas nós já não gostávamos tanto da professora. Já não era nossa.
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5 comentários:
Lindo conto!
Lembro-me perfeitamente das razões invocadas pelo teu irmão, para não estudar.Também falava em ser paralíptico... O que dizem as crianças!
Tenho na minha cabeça episódios vagos da escola primária. Bj
Como é bom recordar!!!
A tua descrição trouxe-me as minhas memórias, não vagas, mas ao pormenor, contadas algumas vezes, e ouvidas com atenção, por ouvidos ávidos de conhecer outros tempos, outros métodos, outras vivências (tão diferentes das deles, em que tudo, ou quase tudo, é permitido).
Também comecei aos cinco anos, no colégio das madres. As minhas irmãs já lá andavam. Foram anos de bom convívio, até ir para o liceu, aos quinze. Tive a sorte de ter tido professoras madres, vestidas a preceito, e encantadoras. Por incrível que pareça, a única professora que me deixou “marcas” na memória, foi a professora da 3ª classe, que não era madre, não tinha filhos, embora casada, e era má “como as cobras”. A minha irmã já me tinha avisado. Era a única que usava “a menina dos cinco olhos” e eu tremia só de olhar. Como contas, era uma palmatoada por cada erro ortográfico! Para os erros, era uma régua grossa, de madeira, parece que estou a vê-la. Verdade se diga que o medo de dar erros era tão grande que nunca dei mais do que dois. Ainda assim, uma reguada em cada mão. E se doíam!!! Mas o que mais me doía era ver a Cocas, colega com muitas dificuldades, sem ajuda em casa, que chegava a apanhar 20 reguadas em cada mão. E as lágrimas corriam, mas o seu orgulho não permitia que se ouvisse um som. Isso marcou-me bastante. Cheguei a comentar com a minha mãe, já adulta, como era possível os pais saberem e permitirem que acontecessem aquelas barbaridades a crianças com 8 anos. Das madres, recordo algumas com saudade: a madre Moita (4ª classe), a madre Duarte (2ª classe), a menina Fátima (1ª classe), a menina Júlia (infantil). Mas nem tudo eram “rosas”. Na minha consciência infantil, reprovei actos de que não fui alvo, continuam contudo a provocar-me sérias interrogações, que não têm resposta. Era assim!!! As meninas que não estudavam, eram humilhadas, em fila, como numa montra, com orelhas de burro e até descalças, para que fossem vistas enquanto as várias turmas se encaminhavam para as respectivas salas. Hoje parece-me tão estranho, tão surreal, que me pergunto se não estarei a sonhar. As minhas irmãs nunca foram vítimas de tal barbaridade, até porque o meu pai nunca o permitiria (lembro-me tão bem da briga que ele teve com a madre Marques – profª da 4ª classe da minha irmã-, só porque estava à nossa espera, ao meio-dia, e a minha irmã não aparecia porque as meninas estavam castigadas e sairiam depois da hora!!!), mas vi muitas, infelizmente filhas de pais mais humildes, que até agradeciam por poderem ter as filhas no colégio (porque de um favor se tratava), a estarem ali, como animais raros, para serem observadas enquanto passávamos. Eu tinha tanta pena que evitava olhar! A Cocas, coitada, era a vítima preferida, e a que me não sai da memória, talvez porque tenha partilhado com ela a sala de aula.
Ainda recordo, com carinho, a madre Toulson (a “sister”, professora de Inglês e de Desenho), a madre Martinho (de História e de Geografia), a madre Correia (advogada e contadora de estórias de vida à hora do almoço, antes das aulas começarem, num cantinho para onde as interessadas se dirigiam, sem ser por obrigação), a madre Pais (também de Português, exigente e sábia), que me fez aprender bem as figuras de estilo e que não nos permitiu analisar o canto IX de “Os Lusíadas”.
Uma mistura de boas recordações, de péssimas recordações, num todo que fizeram de mim o que sou hoje. Pela tolerância, contra o preconceito e a violência.
Ai, Gabi, como o passado nos vem quando começamos a desenrolá-lo!!! É bom, também amargo. E pelo meio, tantas histórias bonitas por contar. A minha sorte é que, para além dos ouvintes no local de trabalho, tenho uma neta que adora ouvir-me.
Que engraçado o novelo e as suas pontas. Memórias da nossa escola básica.
Obgda pela tua tão viva malha, Solange. Pessoalmente tinha pavor assim que ouvia falar no teu colégio, coisas da imaginação talvez.. E a ti Didium, pela aguarela vaga, q é tb isso mesmo a selecção que dentro de nós tornámos em urbe com prioridades.
Sol,
A madre Moita é nossa familiar(minha e da Gabi).
Lembro-me de ter tido a professora Gina, muito querida e depois, num dado ano, frequentei uma outra escola, em que o professor atirava uma borracha enorme, a quem estava distraído...
Não me lembro de ter levado reguadas, mas lembro-me de pregar partidas.
Há episódios da minha infância e mesmo adolescência, que são avivados pela minha irmã.Assim está a minha memória...
Vai fazer um ano que foi realizado um almoço de encontro com a madre Moita, para o qual fui convidada. Com grande pena minha não fui. Essa minha professora da 4ª classe era uma querida. Aprendi muito com ela e nunca a esqueci. Teria sido bom para mim voltar a vê-la, mas esse encontro iria avivar outras memórias, através de outras pessoas que iria encontrar, pelo que preferi deixar assim, paradas no tempo. Enviaram-me as fotos do almoço, com as meninas do colégio das madres de Moçâmedes. Vou enviar-te umas quantas (com a madre Moita) para o teu mail e reencaminhas à Gabi.
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