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sexta-feira, novembro 27, 2009

Não penses para amanhã

Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero.
Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto.

Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez.

Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.

Vergílio Ferreira, in "Escrever"

terça-feira, setembro 16, 2008

O que se sente não se consegue dizer

O que habitualmente se sofre (se sente) não se pode contar. Não é só porque isso é normalmente ridículo (porque a grande maior parte do que se pensa e sente é ridículo) e só o que é grande é que cai bem e vale portanto a pena dizer-se. É que o dizer-se altera o que se diz. O sentir é irredutível ao dizer. Só o estar sofrendo diz o sofrer. Na palavra ninguém o reconhece ou reconhece-o de outra maneira, essa maneira em que já o não reconhece o que o conta.
Mas dizia eu que a generalidade do que se pensa, sente, é ridícula. São raros os momentos de «elevação». A quase totalidade do tempo passamo-la distraídos, alheados em ideias sem interesse, nascidas de coisas sem interesse, as coisas que vai havendo à nossa volta ou no nosso divagar imaginativo ou que nem sequer chega a haver porque há só a abstracção total no quedarmo-nos pregados às coisas que nem vemos nem nos despertam ideia alguma e estão ali apenas como ponto de fixação do nosso absoluto vazio interior.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'

quarta-feira, julho 30, 2008

Escrever

"Um diário. Uma carta. Ou simplesmente as memórias. Nós lemo-las com um prazer diferente de uma obra de arte ou mesmo da arte que está nelas. Não é bem o de saber o que aconteceu, mas o de estarmos nós acontecendo nisso, de prolongarmos a nossa vida até lá."


Vergílio Ferreira, in Diário Inédito

segunda-feira, junho 16, 2008

"Aparição" - Vergílio Ferreira

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens.
No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial.

Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira em que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos. Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na face de espectros...

Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face.
(...)
A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível?

Vergílio Ferreira

Romance autobiográfico, filosófico e existencialista em que o homem busca a identidade de si próprio. Alberto Soares chega a Évora, como professor de liceu, com a angústia da morte súbita e recente do pai... Começa uma busca desesperada e corajosa nos terrenos da existência: quem sou eu? que estou cá a fazer? O professor discute arte, cultura, filosofia, mas preocupa-o acima de tudo a existência humana e o sentido da vida.