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quinta-feira, dezembro 10, 2009

Frustração

Mirage
Salvador Dalí


Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

Miguel Torga, in "Diário XII"

quarta-feira, março 25, 2009

O mundo à nossa medida

Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor.

Miguel Torga, A Criação do Mundo

sexta-feira, julho 11, 2008

O bicho-homem


Estou aqui a ver trabalhar o meu vizinho latoeiro. Estou daqui, maravilhado, a vê-lo fazer um púcaro.
Este bicho-homem, espiolhado por dentro, é medonho. É o sexo, é o estômago, é a ambição, é tudo quanto sabemos. Mas olhado de fora, a tocar piano ou a compor um relógio, é um espectáculo assombroso. A perfeição a que podem chegar as suas mãos não tem confronto com nada. A gente pensa nas abelhas, nos pássaros, nos bichos-da-seda, e aquilo sabe a lição que Deus Nosso Senhor ensinou, com a recomendação de nunca mais se esquecer.
No homem, pelo contrário, ao primeiro e feliz movimento dos dedos seguiu-se uma segunda tentativa. De tal maneira que, de pura estaca de apoio, a sua mão passou a esse polimorfismo, capaz de na mesma hora dar tecnicamente uma fisga e um avião.

Miguel Torga, Diário I, 1941

domingo, junho 22, 2008

Escritores Médicos




Coimbra, 20 de Janeiro de 1961 - A pergunta é sempre a mesma, mas o tamanho da resposta varia consoante a disponibilidade e pachorra.
- A medicina dá muitos escritores! Porque será?
Pacientemente, dobro a receita, tiro os óculos, levanto-me e começo o sermão, que hoje me saiu um pouco sincopado:
- Não é ela que os dá. Limita-se simplesmente, a preservar esse dom aos que nasceram com ele, o que já não é pouco. Ao invés de outras profissões, que estrangulam no indivíduo o espírito de aceitação e compreensão do semelhante, esta faz o contrário. O médico, como tal, nem pode fechar as portas da alma, nem apagar a luz do entendimento. É todo o humano que o solicita a todas as horas; o que sofre, o que simula, o que teme e o que desvaria. E só a graça de uma certa dimensão afectiva e mental permite corresponder eficientemente a tantos e tão diversos apelos. Ora, essa dimensão está implícita na condição do artista, o mais receptivo e perceptivo dos mortais. Por isso, quando o acaso sobrepõe a uma vocação criadora uma condenação clínica, não há dramas sangrentos. A caneta que escreve e a que prescreve revezam-se harmoniosamente na mesma mão.

Miguel Torga, Diário IX (1960-1963)

quarta-feira, maio 28, 2008

Desfecho


Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
( Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte ).

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Miguel Torga, Câmara Ardente, Coimbra Ed.