Coimbra, 20 de Janeiro de 1961 - A pergunta é sempre a mesma, mas o tamanho da resposta varia consoante a disponibilidade e pachorra.
- A medicina dá muitos escritores! Porque será?
Pacientemente, dobro a receita, tiro os óculos, levanto-me e começo o sermão, que hoje me saiu um pouco sincopado:
- Não é ela que os dá. Limita-se simplesmente, a preservar esse dom aos que nasceram com ele, o que já não é pouco. Ao invés de outras profissões, que estrangulam no indivíduo o espírito de aceitação e compreensão do semelhante, esta faz o contrário. O médico, como tal, nem pode fechar as portas da alma, nem apagar a luz do entendimento. É todo o humano que o solicita a todas as horas; o que sofre, o que simula, o que teme e o que desvaria. E só a graça de uma certa dimensão afectiva e mental permite corresponder eficientemente a tantos e tão diversos apelos. Ora, essa dimensão está implícita na condição do artista, o mais receptivo e perceptivo dos mortais. Por isso, quando o acaso sobrepõe a uma vocação criadora uma condenação clínica, não há dramas sangrentos. A caneta que escreve e a que prescreve revezam-se harmoniosamente na mesma mão.
Miguel Torga, Diário IX (1960-1963)
Sem comentários:
Enviar um comentário