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domingo, junho 15, 2008

A ortografia


Não conhecem o erro ortográfico?
O maior deles é irreversível. Consiste em não o (re)conhecermos. E esse irreconhecimento fez dele uma instituição secreta.
(...)
[Os professores de Português] Incompreendidos, tentam não ceder ao desespero. Perderam as ilusões: estão do lado errado de um cruzamento sem sentido. Não sabem que destino dar a tanto erro ortográfico. Eles bem que explicam a diferença entre o "há" do verbo haver e o "à" que contrai uma preposição e um artigo definido. Quanto à conjugação verbal, bem se esforçam os pobres por levar os alunos a distinguir entre "abraça-se" e "abraçasse". É um inferno de loucos, um mundo de surdos. Ninguém é profeta na sua terra; menos ainda na sua língua.

Aos erros ortográficos somam-se agora, em grande, profusa e incontrolada abundância, os chamados erros de "ortografia oral". De que adianta um homem emendar "póssamos" por "possamos" ou "traze-a" por "trá-la", com a respectiva explicação gramatical? Ao cardume dos alunos junta-se a vasta legião dos conspiradores televisivos, radiofónicos, políticos e desportivos - numa imensa epidemia de labregos linguísticos.

Quando vejo um atleta aceder a prestar o seu depoimento, fico logo em guarda: lá vem bombarda! Ouço os yuppies empresariais, os jovens repórteres ou certos representantes das associações de estudantes - e é um pânico. Há tempos, em S. Bento, ao microfone de uma rádio, um rapaz de Coimbra justificava a turbulência de uma manifestação estudantil dizendo que "as pessoas estavam um pouco excedidas". Mas a uma loucura desportiva ouvi eu que aquela "era uma pista onde a prova tinha sido decorrida"...

A última geração que lê será também a última a não dar erros ortográficos e a fechar a porta atrás de si. Há quem atribua aos escritores toda a culpa desta decadência linguística, acusando-os de prescindir da pontuação e de subverter a sintaxe. Pela parte que me toca, e já não é pecado pecar, disponho-me a ir à santa inquisição da língua explicar a minha transgressão da norma. Sem dúvida que a minha dupla condição de professor/escritor me levará à fogueira. Mas permitir-me-á também usar a forquilha do Diabo e rir da gramática, do Acordo Ortográfico, da reforma e do novo regime de avaliação escolar...

(Lisboa, 22-12-1992)

João de Melo, in Dicionário de Paixões.

2 comentários:

didium disse...

Este texto está incluso no manual "Entre Margens" do 10º ano, Porto Editora.
A reflectir...

solange disse...

E eu tenho este Dicionário de Paixões!!!
Este texto diz tudo (ou quase). Foi muito oportuno colocá-lo aqui.