Páginas

segunda-feira, junho 23, 2008

Álvaro de Campos - sobre Pessoa e Ricardo Reis


Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse:"Abomino a mentira, porque é uma inexactidão." Todo o Ricardo Reis - passado, presente e futuro - está nisto.

O meu mestre Caeiro, como não dizia senão o que era, pode ser definido por qualquer frase sua, escrita ou falada, sobretudo depois do período que começa do meio em diante de "O Guardador de Rebanhos".Mas, entre tantas frases que escreveu e se imprimem, entre tantas que me disse e relato ou não relato, a que o contém com maior simplicidade é aquela que uma vez me disse em Lisboa. Falava-se de não sei quê que tinha que ver com as relações de cada qual consigo mesmo. E eu perguntei de repente ao meu mestre Caeiro,"está contente consigo?" E ele respondeu:"Não: estou contente." Era como a voz da terra, que é tudo e ninguém.

Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve.

Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida - das angústias reais em meio de tantas que têm sido fictícias- que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele.Isto é estúpido mas humano, e é assim.

Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.
Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela consolação que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro ou dos seus versos; e a própria ideia do nada - a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade - tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis.

Álvaro de Campos, in " Fernando Pessoa. Obra Poética e em Prosa, VOLUME I

1 comentário:

didium disse...

Isto é que é o multiplicar e desmultiplicar, em identidades completamente definidas,
É PESSOA