Amorosa antecipação
Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,
nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,
nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar o teu sono envolvido
na vigília dos meus braços:
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,
serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,
dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens.
Entregue à serenidade,
divisirei essa praia última do teu ser
e ver-te-ei acaso pela primeira vez
como Deus te verá,
já dissipada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.
Jorge Luis Borges
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segunda-feira, junho 07, 2010
segunda-feira, dezembro 01, 2008
O Cúmplice

Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.
Jorge Luís Borges, in "A Cifra"
sexta-feira, outubro 10, 2008
As coisas
Foto:G.Ludovice 2008
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, essas tardias
Notas que não lerão meus poucos dias
Que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
Violeta, monumento de uma tarde
Por certo inolvidável e olvidada
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, copos, cravos
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
E nunca saberão que já nos fomos.
Jorge Luís Borges
A dócil fechadura, essas tardias
Notas que não lerão meus poucos dias
Que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
Violeta, monumento de uma tarde
Por certo inolvidável e olvidada
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, copos, cravos
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
E nunca saberão que já nos fomos.
Jorge Luís Borges
sábado, outubro 04, 2008
Presente Nulo

Sentimo-nos deslizar pelo tempo, isto é, podemos pensar que passamos do futuro para o passado, ou do passado para o futuro, mas não há um momento em que possamos dizer ao tempo: «Detém-te! És tão belo...!», como dizia Goethe. O presente não se detém. Não poderíamos imaginar um presente puro; seria nulo. O presente contém sempre uma partícula de passado e uma partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo.
Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Tempo'
terça-feira, setembro 23, 2008
THE UNENDING GIFT
Um pintor prometeu-nos um quadro
Agora, em New England, sei que ele morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza e a surpresa de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar determinado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se lá estivesse, seria como tempo essa coisa mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da minha casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e não ligada a ninguém.
De algum modo existe. Viverá e crescerá como uma música, e estará comigo até ao fim. Obrigado Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo de imortal).
Jorge Luís Borges
Agora, em New England, sei que ele morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza e a surpresa de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar determinado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se lá estivesse, seria como tempo essa coisa mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da minha casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e não ligada a ninguém.
De algum modo existe. Viverá e crescerá como uma música, e estará comigo até ao fim. Obrigado Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo de imortal).
Jorge Luís Borges
sábado, julho 26, 2008
Dos livros..
“(...)Declinava o verão, e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade. Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse com fumaça o planeta. Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. (...)"
Jorge Luís Borges
sexta-feira, julho 25, 2008
Borges e eu
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
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