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sexta-feira, outubro 31, 2008

Cada um...

Cada um que passa na nossa vida, passa sozinho…
Porque cada pessoa é única para nós,
E nenhuma substitui a outra.
Cada um que passa na nossa vida passa sozinho,
Mas não vai só…Leva um pouco de nós mesmos
E deixa-nos um pouco de si mesmos.
Há os que levam muito,
Mas não há os que não deixam nada.
Esta é a mais bela realidade da Vida…
A prova tremenda de que cada um é importante
E que ninguém se aproxima por acaso…

Antoine de Saint Exupéry

quinta-feira, outubro 30, 2008

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Berlim
Foto:G.Ludovice 2008

É necessário que se deseje não desejar isso que escapa ou que nunca lá esteve (para se estar em paz) seja o entorno o prato de comida a fumegar, a linha de um livro que falta àquela ideia que nos remete para o beijo que era outro, não importa o que seja...
Mas isso é diagonalmente bom para a humanidade?
O que há de mal em ter como se têm coisas, inquietações?
O que haverá de suspeita se também as não soubermos onde arrumar?
O que há de fantástico em não querer ver esses espaços que sobram do puzzle da vida?
E se lançarmos algumas peças para um sítio a que nunca mais chegaremos, à laia de tempestiva criatividade e acharmos bela, a composição de impensáveis possibilidades?
Essa paz que se pretende perfeita e ideal, pode ser indício de que nem sempre o aceitável é necessário.Varramos vez por outra, o óbvio.
foto: Dinamene
«A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à borda dos grandes fundos e de todos os abismos; é uma virtude dos santos e dos cavaleiros, é indestrutível e cresce com a idade e a aproximação da morte. É o segredo da beleza e a verdadeira substância de toda a arte.»

Hermann Hesse, in 'O Jogo das Contas de Vidro'


Mais nada...

Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E então nasce em nós uma indiferença subtil e profunda para com todos os desaires e desastres da vida.
Os que morrem viraram uma esquina, e por isso os deixámos de ver; os que sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo, se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio sofrimento não será mais que esse nada. Neste mundo dormimos sobre o lado esquerdo, e ouvimos nos sonhos a existência opressa do coração.

Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir... Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...

Fernando Pessoa 21-6-1934

quarta-feira, outubro 29, 2008

Sobre as probabilidades

Lisboa
Foto:G.Ludovice 2006

(...) O que seria a vida se uma pessoa fizesse tábua rasa de todas as regras que só podem ser afirmadas em termos probabilísticos? "Se apostares no cavalo tal perderás provavelmente o dinheiro." Se excederes o limite de velocidade serás provavelmente preso. " Se te atirares a ela levarás provavelmente uma tampa."
O termo coloquial para designar não fazer caso das probabilidades é correr risco.
Quem sabe se uma vida feita de riscos não será (provavelmente) melhor que uma vida vivida de acordo com as regras? (...)

J.M. Coetzee, Diário de um mau ano, Ed. D.Quixote, 2008
«A mim irrita-me o desperdício de tempo. Às vezes, apetece-me bater em algumas pessoas que tiveram a possibilidade de ler e não leram.»
Gonçalo M. Tavares

terça-feira, outubro 28, 2008

O POETA

O poeta escreve, debruçado, esquecido, alienado,
Inventa novos mundos, irreais, irracionais,
Escreve sobre sonhos, seres que habitam nas suas ilusões, mundos de emoções
Poeta sonhador.

O poeta escreve, olhando em volta, atento, revoltado,
Retrata realidades, seres que sofrem dificuldades,
Escreve sobre pobreza, racismo, fome, trabalho
Poeta relator.

O poeta escreve, sorridente, apaixonado, emocionado,
Descreve alegrias mundanas, cores, pessoas, flores, sabores,
Escreve sobre vida, nascimento, esperança, tolerância
Poeta optimista.

O poeta escreve, embriagado, coração apertado, desamor,
Conta-nos a profundidade da dor, amargura, noite interior,
Escreve sobre a morte, o frio, desesperado e só
Poeta triste.

O poeta escreve concentrado, brincando, ouvindo a música das palavras,
Rima animado, produzindo ecos e sons,
Escreve sobre tudo, sobretudo para rimar
Poeta cantor.

O poeta escreve enamorado, outras vezes desiludido,
Conta-nos paixões, encontros, amores, também desencontros,
Escreve sobre amor etéreo ou carnal, platónico ou real
Poeta amante.

O poeta pega nas palavras, uma a uma,
E constrói sonhos, verdades, alegrias, tristezas, ritmos ou paixões…
As palavras pegam no poeta, com cuidado,
Misturam-se no seu interior, saem palpitantes,
Fazem-se necessidade do poeta em se expressar, em comunicar.

Já tudo foi dito, as palavras vagueiam bem por cima de nós,
Nebulosas memórias da verdade ou luminosos espectros da vontade.
Já tudo foi dito.
Por isso o poeta pega nas palavras e diz tudo de novo, de outras formas…
As palavras pegam no poeta para que as relance e ninguém esqueça.

Dinamene

segunda-feira, outubro 27, 2008

Não acendas a luz

Não acendas a luz!
Deixa-me estar na penumbra,
no tempo que se anuncia
quieto, vagaroso, cauteloso.

Faz o movimento que seduz,
entra silencioso e relembra,
que a altura não se renuncia,
age, não se torne o gesto moroso.

Acende a luz, agora!
É tempo de me erguer,
de te escutar, de me ouvir,
de sair deste recanto.

Já chegaste, vens na hora,
no momento de te ver!
Estou aqui, não vou sucumbir,
Tira-me deste quebranto!

maria eduarda

«Diário de uma viagem aos Himalaias - Nepal»

Continuação 2

Encontram-se também muitas crianças (algumas bem pequeninas), descalças, a brincar à beira do caminho, muito sujas, com os rostos bem marcados pelo frio e pelo fumo das lareiras, mas sempre com um sorriso nos lábios. Quando passamos saúdam-nos com as mãos postas dizendo a palavra "Namasté", a saudação no Nepal.
Algumas ofereciam-nos flores e raramente pediam. Quando tentávamos fotografá-las, escondiam-se.
Pelas 12h 30 almoçámos num lodge denominado “Jorsalle Village”. Este espaço era muito rudimentar e a senhora que preparou o almoço tinha o rosto muito marcado pelo frio e pelo fumo da lareira.
É impressionante como esta gente vive: tantas dificuldades, o rosto bem marcado, mas sempre com um sorriso nos lábios. Parecem pessoas rudes, mas mostram sempre alguma delicadeza no trato, na forma como nos servem, sempre com o mesmo tom de voz calmo. Transmitem-nos tranquilidade.
A seguir ao almoço, após uma grande subida de mais 3h de caminhada, chegámos a Namche Bazar. A 3440m de altitude, há um ligeiro cansaço e o coração bate um pouco mais forte.
À medida que vamos subindo, vamos sentindo cada vez mais emoção. Não há palavras para descrever tanta beleza natural e as pessoas são muito simpáticas, têm um ar calmo, tranquilo, sem stress. A paisagem é decorada com bandeirinhas de oração penduradas por todo o lado, a baloiçar com o vento, parece que estamos num ambiente de festa. É lindo…!
As casas são de pedra com as janelas e telhados muito coloridos, em tom azul, a contrastar com a cor da montanha, com o sopé sem neve e os picos branquinhos.
Há cortininhas nas janelas e as portas têm panos coloridos a tapar a entrada como que a esconder o interior pobre e humilde.


fotos e texto de Isaura Tavares
«Encontrar alguém com talento é uma felicidade, encontrar um livro bom é uma festa, uma alegria.»
António Lobo Antunes

domingo, outubro 26, 2008

Analogias I


Nas minhas mãos, o novelo,
enrolado e ajustado à ocasião,
para ser transformado, desfigurado.
Assim a chuva se torna gelo,
nestes dias de frio e solidão,
água cristalina em bloco mascarado.

O frio gela o prado imenso,
as árvores nuas, em grito solto,
o céu, de turvo, incomodado.
No lar já não basta o incenso,
que tenta alterar o ar envolto,
em fragâncias libertas por todo o lado.

O novelo deixa cair o seu fio,
Colorido, brilhante, espesso.
Formo nas mãos, uma rede,
junção de pedaço de um rio,
que se junta ao mar avesso,
nessa eterna ligação, sem sede.

maria eduarda

sábado, outubro 25, 2008

Tenho tantas estagnações

Tenho grandes estagnações. Não é que, como toda a gente, esteja dias sobre dias para responder num postal à carta urgente que me escreveram. Não é que, como ninguém, adie indefinidamente o fácil que me é útil, ou o útil que me é agradável. Há mais subtileza na minha desinteligência comigo. Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias; só a vida vegetativa da alma - a palavra, o gesto, o hábito - me exprimem eu para os outros, e, através de eles, para mim.
Nestes períodos de sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, e querer. Não sei escrever mais que algarismos, ou riscos. Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira. Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus actos certos, não fossem mais que uma respiração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer.
Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto da minha vida, se somasse, se não haveria passado assim. Às vezes ocorre-me que, quando dispo esta paragem de mim, talvez não esteja na nudez que suponho, e haja ainda vestes impalpáveis a cobrir a eterna ausência da minha alma verdadeira; ocorre-me que pensar, sentir, querer também podem ser estagnações perante um mais íntimo pensar, um sentir mais meu, uma vontade perdida algures no labirinto do que realmente sou.
Seja como for deixo que seja. E ao deus ou aos deuses que haja, largo da mão o que sou, conforme a sorte manda e o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido

Fernando Pessoa, 10-12-1930

sexta-feira, outubro 24, 2008

RIR


Colocar a voz,
Rir a preceito,
Com alma na boca.
Porque para todos nós,
A vida corre a seu jeito,
Mesmo que por vezes oca.
Não parar de sorrir,
Mesmo que só por ousadia,
Ou por que falte a vontade.
Teimar e não desistir,
Deixando entrar mais um dia.
Construir a felicidade,
sempre, mas sempre a sorrir.


maria eduarda

quinta-feira, outubro 23, 2008

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil,

Dresden
Foto:G.Ludovice 2008

Atar os sapatos à alma, como se ela fosse uma coisa de possível entendimento.
Ou nalgum bolso trazê-la num postal!!
Às vezes apetece isso, de como se um cachecol a pudesse contornar.
E mostrá-la como se faz a um filho sempre de colo ou a uma paisagem desapossada de limites, como algo inevitável no palpitar mais fundo.

«Diário de uma viagem aos Himalaias - Nepal»

Continuação 1

Pelas 15h 30m, já alimentados e de mochilas às costas, iniciámos a nossa primeira caminhada de 3h, cerca de 6 km, com destino a Phakding, a 2610m de altitude.
Pelo caminho pudemos observar alguns rochedos gravados com orações budistas e ornamentados com bandeiras (panos) de oração muito coloridas, transmitindo uma certa beleza e algo de mítico (os povos acreditam que as orações ou preces são levadas pelo vento e são ouvidas pelos deuses).

Pontos de oração
Segundo indicações dos guias, estes rochedos devem ser sempre contornados pela esquerda, na direcção dos ponteiros do relógio, uma questão de religião. Ao contorná-los, rezam para terem sorte e saúde nesta vida e na outra que acreditam vir a ter.
As instalações onde pernoitámos eram novas, bem equipadas e com boas casas de banho para cada dois quartos (surpresa!). Faziam lembrar chalés suíços. Aqui pudemos tomar banho quente, já que nos dias seguintes seria, talvez, impossível, devido à falta de condições e ao frio que se iria sentir.

Os primeiros aposentos

Deitámo-nos bem cedo, porque no dia seguinte esperava-nos uma longa caminhada, com algumas subidas até Namche Bazar, o mais importante povoado do Khumbu, a capital da região sherpa.

No 4º dia iniciámos a caminhada às 8h, com uma boa subida até Monjo – entrada no Parque Nacional Sagarmatha.

A primeira parte do trilho desenrolou-se por um lindo vale, com alguma vegetação e sempre ao longo do rio Dudh, com pontes suspensas que nos levavam ora à margem esquerda, ora à margem direita, onde se desenrolava o trilho, avistando ao longe os picos brancos das mais altas montanhas do mundo.

Ao longo de todo o percurso (principalmente até Namche Bazar), encontram-se muitas localidades com lodges, para apoio às expedições.

Estas pontes, suspensas por cabos de aço, são muito estreitas e baloiçam à nossa passagem. Algumas deixam ver, através dos buracos deixados pelas velhas tábuas, as águas do rio lá bem no fundo.

Ponte sobre o rio Dudh

Imaginem se nos cruzássemos com outros transeuntes mais corpulentos e de chifres (os yaques)! Era preciso ter atenção e ficar o menos tempo possível em cima da ponte, não fossem eles aparecer!

Texto e fotos de Isaura Tavares

«O Homem é bom por natureza.»
Jean-Jacques Rousseau

quarta-feira, outubro 22, 2008

«Diário de uma viagem aos Himalaias - Nepal»

Ama Dablam - Isaura (2005 )

A Isaura escreveu o seu diário de viagem, em 2005, com tanta emoção e beleza, que, tendo-o partilhado comigo e aceitando que coloque aqui excertos seleccionados, penso que será muito agradável “viajar” com ela e conhecer um pouco da sua experiência de aventureira organizada.

«… Acompanhados pelos guias, em Lukla, fizemos uma pequena caminhada dentro da localidade até ao primeiro lodge (espaço, tipo de pensão ou albergue, que dá apoio às expedições) onde almoçámos. Os nossos sacos já estavam a ser distribuídos pelos carregadores. Enquanto esperávamos pelo repasto, observámos como era feita a distribuição dos nossos sacos, com 15 kg cada, pelos vários animais (espécie de bois descendentes de yakes e vacas) e homens.

Para carregar a nossa bagagem, tínhamos 6 Yakes e dois rapazes sherpas, bastante jovens. Fiquei impressionada com o peso que cada um ia transportar: três sacos, com aproximadamente 15 kg cada, mais a própria mochila. Como era possível?! Os Yakes são animais corpulentos e peludos que vivem nas zonas mais altas e frias e, por isso, dão muito apoio às expedições.Os carregadores levam tudo o que é necessário para abastecer as diversas localidades. Andam mal vestidos e mal calçados, por vezes de chinelos. Vêem-se grandes pedaços de carne a serem levados dentro dos cestos, bidões com combustível, bilhas de gás e muito mais. Levam na mão um pau com uma base que os ajuda a descansar quando não têm onde poisar a carga. É inconcebível, tanto esforço que têm que despender. Estas imagens, nunca mais esquecerei, dificilmente se apagarão da minha memória. Sei que estão habituados e que é esta a sua forma de vida, mas o esforço é demasiado.

Estávamos a 2840m de altitude e iríamos chegar aos 5550m. Quanta emoção, ao vermo-nos ali no coração dos Himalaias, aos pés da mais alta montanha do mundo, o “Everest”, com 8848 metros de altitude. Este era o 1º dos 17 dias que iríamos passar nas montanhas, afastados de muitas comodidades a que estamos habituados: telemóveis, alcatrão, estrada, carros ou qualquer tipo de transporte motorizado, WC equipada, água canalizada, electricidade, aquecimentos, água potável! O primeiro contacto com as populações fez-me recuar muitos anos, lembrei-me da minha aldeia, quando as ruas não tinham alcatrão, não havia electricidade e se utilizavam cântaros de barro para ir à fonte (um poço afastado da aldeia com um caldeiro numa roldana) buscar água. Lukla é um grande povoado, tem muito comércio e as crianças brincam nas ruas sujas com esgoto a céu aberto.
Percorremos as ruas, que se encontravam em obras, até ao fim, onde um pequeno arco nos indicava uma porta de saída, ou melhor, a entrada num outro espaço que parecia levar-nos a outro planeta – o espaço que iríamos calcorrear durante 17 dias no coração dos Himalaias, interior do “Parque Nacional de Sagarmatha”. Nesta saída estavam alguns militares armados a observar, com descontracção, quem passava. A partir daqui só caminhos estreitos, trilhos de montanha onde não circulava qualquer tipo de transporte, mesmo sem motor. Ali, só a força dos homens ou dos yaques.»
Saída/entrada de Lukla
Início/fim da caminhada - 17 dias
Isaura Tavares in "Diário de uma viagem"

Dormir



A sonolência, a dormência,
apoderam-se do ser,
envolvem-se e instalam-se.
Vêm devagar, silenciosamente,
tal passo em chão atapetado.
O acordar é um não querer,
é continuar no outro lado,
no lado do adormecer.
maria eduarda

Sem outro intuito


Atirávamos pedras à água
para o silêncio vir à tona.
O mundo,
que os sentidos tonificam,
surgia-nos então,
todo enterrado na própria carne,
envolto por vezes
em ferozes transparências,
que as pedras acirravam
sem outro intuito,
além do de extraírem às águas,
o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava, in Vulcão, I

terça-feira, outubro 21, 2008

O essencial é ter o vento

O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.


Reinaldo Ferreira , in"Poemas" Livro I


segunda-feira, outubro 20, 2008

Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor,
de esperança,
De imenso amor,
de esperança louca
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

Alexandre O'Neill

Espero por ti

Espero por ti,
à saída do metro,
e envolvo-me no burburinho,
nos passos apressados,
nas vozes silenciosas,
daqueles que sussurram,
e voltam a partir...
Espero por ti,
sempre ansiosa, desperta,
enferma da dádiva do amor,
que sentes por mim.
Agora, atenta à sombra,
à sombra do teu corpo,
que se aproxima.
Voltaste para mim,
na paragem do metro,
de todos os dias.

maria eduarda

domingo, outubro 19, 2008

«A força não está assente numa capacidade física. Repousa numa vontade indomável. É assim que um pequeno grupo de espíritos determinados, habitados por uma fé infinita na sua missão, pode mudar o curso de uma história.»
Gandhi

sábado, outubro 18, 2008

«Aqueles que dão, têm tudo; aqueles que guardam para si, não têm nada.»

Provérbio hindu

sexta-feira, outubro 17, 2008

Antes do passamento físico


É em surdina, nos acordares, visitado por duas moles colinas mesmo abaixo do já sem verde dos olhos, a ocuparem-lhe artisticamente o descomeço.
Antes do chapéu da sexta noite assentar, descruza miudamente os pensamentos, de modo a que a vontade do passeio não fique a atravessar-lhe a garganta em modo parado. Desliza pelo antigo pescoço os grossos dedos da mão descasada com a doença, arruma o seu volumoso caroço de Adão mais para cima, experimenta apagar a rouquidão já mecânica com murros curtos no peito e lança-se no ímpeto dessa utilidade, a sedução.
Há muitas estatuetas de esquina que quebram as ancas e o sedimento da resignação da idade, di-lo a sua mão escapulida à imobilidade ainda com desejos de pássaro - toda a superfície macia de uma mulher é de se voar. Nem todos podem fazer descaso disso. É uma bênção inscrita no jeito duvidoso do homem, umas vezes parece que não sabe outra coisa mas alheio ao acto, estorva-lhe esse chilreio de mundos, parece que sobram do silêncio, as mulheres. O homem nesse arrogante descontacto, decora-se de outra ambição. A de ser o invasor dos espaços com seu arco macho, essa voz grave que emudece os olhos das casas e estremece de escuro as almas femininas que lá suportam o tecto.
Mas nem sempre o abraço do homem é vento a deformar a feitura composta de um rosto, há também a mansidão na mesma morada. É só saber o momento dessa estadia.
Sabem-no as mulheres que o servem, dorsos riscados pelas palmas alheias, que no corpo, a verdade existe em profundeza de temido rio.
Muito homem para também escancarar as pernas do riso, em velho tronco, ajeita-se de ossos parados, aterrados sem hélice sobre o compacto pavimento do macio ventre, sem escolha de não ser voado. Os céus vão e voltam sob azuis maiores.
Recompõe-se apressado na cor da sua adultez, agarrado a nada, antes das duas moles colinas desaguarem para o mistério.
A terra também há-de sorvê-lo em desejo tamanho de verme másculo, matuta devagarzinho o rio.
(2006)

Parquímetros ou mealheiros?!…









No local onde vivo há parquímetros ao virar de cada esquina… Não interessa qual é a cidadezinha, pois suponho que tal se verifica em muitos cantos e recantos deste pequeno País.
Quem está desempregado e vai ao IEFP, paga para estacionar!
Quem tem consulta no Centro de Saúde, paga para estacionar!
Quem precisa de passar uma tarde ou manhã, porque menos tempo nunca é, na Segurança Social, paga para estacionar!
Quem vai às Finanças, ao Tribunal, paga para estacionar…
E o mesmo se verifica para ir a outras repartições públicas, enfim…
Moeda no parquímetro é obrigatório! E, uma sorte, se não tivermos de dar também uma ao "arrumador de serviço"!
Quem não paga parquímetro não se livra mesmo de ver as rodas do carro bloqueadas, quando este não é rebocado, e de pagar uma multa jeitosa!
Já me aconteceu ter de pagar multa por ter o carro mais tempo estacionado do que aquele que a moedinha permitia… E se passei uma manhã inteira à espera da consulta para o bebé, os fiscais não se importaram mesmo nada!
Até já pensei se o tempo que demoramos nas repartições públicas não serão uma estratégia dos que "amealham" para fazerem mais uns trocos… Já que, de hora a hora, lá vamos nós colocar mais uma moeda no seu mealheiro!
Sim, poderíamos tentar ir de autocarro… Mas , além de a frequência não ser a desejada, não têm rampas para carrinhos de bebé, além de muitas das paragens estarem longe dos locais onde precisamos de ir! Ainda não serão a solução…

Isto tudo para vos contar um episódio "feliz"!
Um dia destes, ia eu apressada a uma consulta de rastreio dentário - gratuita - para uma das minhas crianças, mesmo em cima da hora, e tal não foi o meu espanto quando verifico que nem uma moedinha na carteira! Só uma nota de 5€ e o parquímetro ali, a olhar para mim, quase que a dizer "ou pagas, ou levas multa"… Olho à volta, nem um café para trocar a nota, nem uma loja, nada…
Entretanto, passa um senhor a quem pergunto se não há estacionamentos sem parquímetros por perto!?
E o senhor, gentilmente, tirou uma senha para "uma hora de estacionamento", paga com dinheiro do seu porta-moedas!...
Agradeci-lhe emocionada e lá fui a correr para o rastreio…
Fiquei comovida com a solidariedade do homem e, apesar de detestar parquímetros -mealheiros , nesse dia, ajudaram-me a ver que, às vezes , os desconhecidos são nossos amigos… e até ajudam a reforçar o "cofre do estado" por nós!
Aqui ficam os meus melhores cumprimentos ao senhor e a todos os que, como ele, são capazes de olhar para os outros quando passam e esticar a mão, se necessário...
Dinamene



«A liberdade é a verdadeira fonte da felicidade e da criatividade humanas. Independentemente de ser crente ou não, de ser budista, cristão ou judeu, o que é importante é ser um bom ser humano.»
Dalai Lama
«... talvez o acaso exista... Até certa altura fui muito, muito religiosa. Até que um dia pensei: "Bom , se Deus existe, ele não é mesmo nada simpático..."
Fiquei terrivelmente desiludida, talvez aos 13, 14 anos. Queria fazer parte dessa ordem das coisas, mas acho que preferia simplesmente a solidão das capelas e o cheiro a flores à ideia de Deus. Acho que era mais uma questão de fuga, de refúgio, do que de fé. Admiro muito as pessoas que têm fé, invejo-as. Mas fui percebendo que Deus, afinal, é... você, é o Outro.»
Juliette Gréco in "Visão"

quinta-feira, outubro 16, 2008


Perguntaram a Juliette Gréco se, nos anos do pós-Guerra, quando conviveu de perto com as mais notáveis figuras da inlelectualidade e das artes, em Paris, ela era sedutora ou seduzia. Respondeu:

«Eu era extremamente curiosa. Recebia muito. Interessada pelos outros, sem dúvida, mas seduzida não sei... Eu seduzi muito, isso sim, sem dúvida. (risos) O meu encontro com essas pessoas todas foi mais que sorte, foi um milagre. Eu era uma miúda, nada era pensado, não havia nenhuma estratégia, nem podia haver... Era uma miúda terrivelmente tímida. E inquieta. Não falava, ouvia. É assim que se aprende. De tempos a tempos, punha uma questão... E tinha a sorte de ouvir respostas.»
«Não passo a vida a olhar-me ao espelho. Prefiro o espelho dos olhos daqueles que olham para mim.Vestir-me, maquilhar-me, pentear-me... faço-o por respeito, por cortesia.»
Juliette Gréco cantora, 81 anos

quarta-feira, outubro 15, 2008

«A felicidade para mim não se encontra nos bens materiais, está dentro do coração de cada um, e o coração não é material, é um sentimento, é o nosso ser. A meditação dá-nos a consciência do que nós próprios somos.»
Nuno Lobito "Sons do Silêncio"

Estou aqui e agora

Estou aqui onde me vêem, mas não estou aqui! Os meus sentidos sobrepõem-se ao meu querer e voam para nenhures, onde também não poderei estar.
Eu quero estar agora aqui, mas não posso. Não há razão para que me instale agora aqui, porque o meu querer foi anulado. Só os sentidos comandam a minha vontade.

A visão mostra-me o belo, o diáfano, a luz; a audição faz-me vibrar com uma melodia suave; o olfacto transmite-me o odor da terra molhada e também da maresia; o sabor é salgado e doce, uma mistura ímpar...

Soergo-me e toco o espaço que me circunda e, este gesto, este tacto, diz-me que devo estar aqui, onde me encontro, por enquanto.

E se os sentidos prevalecem, o querer é forte, deve enfrentá-los e tomar a dianteira!

Então, eu quero e posso estar aqui e agora!

maria eduarda



terça-feira, outubro 14, 2008

"Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo..."
Álvaro de Campos

sábado, outubro 11, 2008

Gramática de superfície

Londres
Foto:G.Ludovice 2008


Não é possível "retratar" as semelhanças existentes entre um retrato e o objecto retratado, também não é possível "dizer" , expressar mediante enunciados a forma lógica comum à linguagem e à realidade. Esta apenas se mostra, não se diz.
Ludwig Wittgenstein

Já não há nada a fazer!

"Ao longo da vida todos vamos ouvindo frases mais ou menos desagradáveis e daninhas, mas nenhuma é tão perversa como esta: “Já não há nada a fazer!” dita a um doente em fase terminal ou com doença incurável, é uma frase verdadeiramente assassina.Quem nunca a ouviu dê-se por muito feliz. Quem nunca a disse tente permanecer deste lado da barricada. Quem alguma vez a proferiu perceba o alcance do tiro que deu porque quem a ouve morre sempre um bocadinho. Começa a morrer naquele preciso minuto.Condenar os vivos a uma morte em vida é a pior condenação que conheço. E sei do que falo porque há anos que vivo com a memória do olhar de um amigo que me contou como era viver essa condenação num corredor de terminais de um hospital oncológico. Explicou-me como era acordar e adormecer todos os dias à espera de saber se era finalmente aquele o dia em que morria.O meu amigo chamava-se Paulo, tinha a idade de um dos meus irmãos, fazia mergulho com eles e não lhe apetecia nada morrer. Muito pelo contrário, adorava viver, tinha uma predilecção especial pelo fundo do mar e contava tudo o que via. Passava horas a fio dentro de água e tinha o sonho de viver uma vida longa, que lhe permitisse explorar aquele mundo líquido de luz e sombras. Aos 20 anos diagnosticaram-lhe um cancro e, como era novo, tudo aconteceu muito rápido. A doença evoluiu muito depressa e em poucos meses ele estava acamado na ala dos doentes terminais. Era duro visitá-lo porque era Verão. Fora do hospital havia sol e fazia calor, todos estávamos de férias, íamos à praia e mergulhávamos no mar de consciência pesada por podermos fazê-lo com inteira liberdade.“Disseram-me que já não havia nada a fazer e puseram-me aqui nesta ala onde só estamos à espera de morrer. É terrível. À noite tenho pesadelos e não consigo dormir, mas há quem chegue a pôr as campainhas de urgência fora do nosso alcance para não podermos chamar ninguém. Acham que é tempo perdido porque vamos morrer e não sabem o que nos hão-de fazer.”Lembro-me do gesto que desenhou no ar com o braço, para me mostrar o que queria dizer. Era alto, tinha sido um desportista e, por isso, ainda tinha uma amplitude de gestos notável dado o seu estado clínico, mas, mesmo assim, a mão não chegava à campainha pendurada num fio que alguém tinha posto num lugar realmente impossível de alcançar. Impressionou-me na altura e ainda hoje me faz impressão que haja profissionais de saúde sem vocação nem coração.Paulo passou o último mês da sua vida naquele corredor de terminais. Morreu num dia que amanheceu igual aos outros, cheio de sol e de luz. Nunca mais me esqueci da luz desse dia.Há profissões na vida, como as que a referi e outras que para além do vencimento que se aufere, é preciso ter vocação para elas. É preciso, é necessário podermo-nos dar aos outros. Só assim podemos ser verdadeiros profissionais."

Laurinda Alves, in "Público"

sexta-feira, outubro 10, 2008

As coisas

Trodel Markt, Dresden
Foto:G.Ludovice 2008

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, essas tardias
Notas que não lerão meus poucos dias
Que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
Violeta, monumento de uma tarde
Por certo inolvidável e olvidada
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, copos, cravos
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
E nunca saberão que já nos fomos.
Jorge Luís Borges

Prémio Nobel da Literatura 2008

Os escritor Jean-Marie Gustave Le Clézio foi o nome escolhido pela Academia Real Sueca como vencedor do Nobel da Literatura deste ano.
Desde 1985 que um escritor francês não ganhava o Nobel Literário. Aos 68 anos, Le Clézio, autor de romances de aventura, ensaios e literatura infantil, sucede à escritora britânica Doris Lessing, galardoada o ano passado.
O prémio foi instituído pelo milionário Alfred Nobel e estabelecido em 1901, com excepção para o Nobel da Economia, introduzido pelo Banco Central da Suécia em 1968.
Jean-Marie Gustave Le Clézio (il signe J.M.G. Le Clézio), né le 13 avril 1940 à Nice, est un écrivain franco-mauricien. Il connaît très vite le succès avec son premier roman publié, "Le Procès-verbal" en 1963. Influencé par ses origines familiales mêlées, par ses incessants voyages, et par son goût marqué pour les cultures amérindiennes, J.M.G. Le Clézio est également principalement connu pour ses romans Désert et Le Chercheur d'or, mais il est aussi l'auteur d'une quarantaine d'autres ouvrages de fiction (romans, contes, nouvelles) et d'essais. Le Prix Nobel de Littérature lui est décerné en 2008, en tant qu'« écrivain de nouveaux départs, de l'aventure poétique et de l'extase sensuelle, explorateur d'une humanité au-delà et en-dessous de la civilisation régnante. »

quinta-feira, outubro 09, 2008

Qual a sua experiência?

A redacção que se segue foi escrita por um candidato numa selecção de Pessoal na Volkswagen.
A pessoa foi aceite e o seu texto está a fazer furor na Internet, pela sua criatividade e sensibilidade
.

«Já fiz cócegas à minha irmã só para que deixasse de chorar, já me queimei a brincar com uma vela, já fiz um balão com a pastilha que se me colou na cara toda, já falei com o espelho, já fingi ser bruxo.
Já quis ser astronauta, tanguista, violinista, mago, caçador e trapezista; já me escondi atrás da cortina e deixei esquecidos os pés de fora; já estive sob o chuveiro até fazer chichi.
Já roubei um beijo, confundi os sentimentos, tomei um caminho errado e ainda sigo caminhando pelo desconhecido. Já raspei o fundo da panela onde se cozinhou o creme, já me cortei ao barbear-me muito apressado e chorei ao escutar determinada música no autocarro.
Já tentei esquecer algumas pessoas e descobri que são as mais difíceis de esquecer. Já subi às escondidas até ao terraço para agarrar estrelas, já subi a uma árvore para roubar fruta, já caí por uma escada. Já fiz juramentos eternos, escrevi no muro da escola e chorei sózinho na casa de banho por algo que me aconteceu; já fugi da minha casa para sempre e voltei no instante seguinte.
Já corri para não deixar alguém a chorar, já fiquei só no meio de mil pessoas sentindo a falta de uma única. Já vi o pôr-do-sol mudar do rosado ao alaranjado, já mergulhei na piscina e não quis sair mais, já tomei whisky até sentir os meus lábios dormentes, já olhei a cidade de cima e nem mesmo assim encontrei o meu lugar.
Já senti medo da escuridão, já tremi de nervos, já quase morri de amor e renasci novamente para ver o sorriso de alguém especial, já acordei no meio da noite e senti medo de me levantar. Já apostei a correr descalço pela rua, gritei de felicidade, roubei rosas num enorme jardim, já me apaixonei e pensei que era para sempre, mas era um 'para sempre' pela metade.
Já me deitei na relva até de madrugada e vi o sol substituir a lua; já chorei por ver amigos partir e depois descobri que chegaram outros novos e que a vida é um ir e vir permanente.
Foram tantas as coisas que fiz, tantos os momentos fotografados pela lente da emoção e guardados nesse baú chamado coração...
Agora, um questionário pergunta-me, grita-me desde o papel: " - Qual é a sua experiência?"
Essa pergunta fez eco no meu cérebro.
Experiência.... Experiência...
Será que cultivar sorrisos é experiência?
Agora... agradar-me-ia perguntar a quem redigiu o questionário:
- Experiência?! Quem a tem, se a cada momento tudo se renova???»


quarta-feira, outubro 08, 2008

«É melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; melhor ser um Sócrates insatisfeito que um tolo satisfeito; e, se o tolo ou o porco tem uma opinião distinta, é porque eles só conhecem o seu próprio lado da questão.»

John Stuart Mill, in 'Utilitarismo'

Modos de Construir uma Personalidade

Modos de construir uma personalidade, ou os oito problemas principais: Queremos simplificar-nos, ou diversificar-nos? Queremos ser mais felizes, ou mais indiferentes à felicidade e à desgraça? Queremos ficar mais satisfeitos connosco, ou mais exigentes e mais impiedosos? Queremos tornar-nos mais amigáveis, mais indulgentes, mais humanos, ou mais desumanos? Queremos ser mais prudentes, ou mais impulsivos? Queremos atingir um fim, ou evitar todos os fins - como, por exemplo, faz o filósofo para o qual toda a espécie de fins tresanda, despropositadamente, a limites impostos, mesquinhez, prisão, toleima? Queremos ser mais respeitados e mais importantes, ou mais desconsiderados? Queremos tornar-nos tiranos, ou impostores? Pastores, ou carneiros?
Friedrich Nietzsche, in 'A Vontade de Poder'
Mude

Mas comece devagar,
porque a direcção é mais importante que a velocidade.
Sente-se noutra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde,
mude de mesa.
Quando sair,
procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
ande por outras ruas, calmamente,
observando com atenção os lugares por onde passa.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia,
ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama...
Assista a outros programas de T.V., compre outros jornais...
leia outros livros,
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia, o novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor,
a nova vida.
Tente.
Procure novos amigos.
Faça novas relações.
Ame muito,
cada vez mais, de modos diferentes.
Escreva outras poesias.
Vá a outros cinemas,
outros teatros,
visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento, o dinamismo, a energia.

Edson Marques

terça-feira, outubro 07, 2008

«A coisa mais fácil de fazer é aconselhar e repreender.»
Provérbio (anónimo)

O Valor da Crónica de Jornal

A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o lêem: conta mil coisas, sem sistema, sem nexo, espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, dos enfeites, fala em tudo baixinho, como quando se faz um serão ao braseiro, ou como no Verão, no campo, quando o ar está triste. Ela sabe anedotas, segredos, histórias de amor, crimes terríveis; espreita, porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo, umas vezes melancolicamente, como faz a Lua, outras vezes alegre e robustamente, como faz o Sol; a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China; ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal; está nas suas colunas contando, rindo, pairando; não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando. A crónica é como estes rapazes que não têm morada sua e que vivem no quarto dos amigos, que entram com um cheiro de Primavera, alegres, folgazões, dançando, que nos abraçam, que nos empurram, que nos falam de tudo, que se apropriam do nosso papel, do nosso colarinho, da nossa navalha de barba, que nos maçam, que nos fatigam... e que, quando se vão embora, nos deixam cheios de saudades.
Eça de Queirós, in 'Distrito de Évora'

segunda-feira, outubro 06, 2008

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Berlim, Nollendorfplatz
Foto:G.Ludovice 2008


No limiar de algo, está o sabor da realidade pronto para as papilas gustativas da vida.
Não que se tenha de saber o vento rasante da queda, para se saber o que isso é em profundidade, porque não é quando se busca que se encontra.
Também não se pense que todos esses sabores são agradáveis. Nem se imagine que existem com algum sentido. São apenas isso que não sabemos o que é, mais perto de nós, contrariando porventura a nossa independência de tais intimidades, quando assim numa tarde dos sentimentos e nalgum pomar de circunstâncias, se descobre sem esforço a manhã deles e então, o sabor ainda sem o amor das palavras vem ao de cima em nós, como uma coisa que nos encontra na sua viagem sem olhos.

Quem me mandou a mim querer perceber?

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos, E eu fico confuso, perturbado,
querendo perceber não sei bem como nem o quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão me passa pela cara,
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXII"

sábado, outubro 04, 2008

Presente Nulo

Não é extraordinário pensar que dos três tempos em que dividimos o tempo - o passado, o presente e o futuro -, o mais difícil, o mais inapreensível, seja o presente? O presente é tão incompreensível como o ponto, pois, se o imaginarmos em extensão, não existe; temos que imaginar que o presente aparente viria a ser um pouco o passado e um pouco o futuro. Ou seja, sentimos a passagem do tempo. Quando me refiro à passagem do tempo, falo de uma coisa que todos nós sentimos. Se falo do presente, pelo contrário, estarei falando de uma entidade abstracta. O presente não é um dado imediato da consciência.
Sentimo-nos deslizar pelo tempo, isto é, podemos pensar que passamos do futuro para o passado, ou do passado para o futuro, mas não há um momento em que possamos dizer ao tempo: «Detém-te! És tão belo...!», como dizia Goethe. O presente não se detém. Não poderíamos imaginar um presente puro; seria nulo. O presente contém sempre uma partícula de passado e uma partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo.

Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Tempo'

Benguela
Foto:G.Ludovice 2006

Porque não será dado a todos tomar parte na refeição da tarde? Seria tão belo!!
DIÁRIO, 11.3 1912, Kafka

sexta-feira, outubro 03, 2008

«Se podemos sonhar, também podemos tornar os nossos sonhos realidade.»
Walt Disney

Spinoza

Dresden
Foto:G.Ludovice 2008

"Todas as coisas querem persisitir no seu ser"
Baruch Spinoza



Um mimo ao Miguel Pyrrait