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sábado, outubro 11, 2008

Já não há nada a fazer!

"Ao longo da vida todos vamos ouvindo frases mais ou menos desagradáveis e daninhas, mas nenhuma é tão perversa como esta: “Já não há nada a fazer!” dita a um doente em fase terminal ou com doença incurável, é uma frase verdadeiramente assassina.Quem nunca a ouviu dê-se por muito feliz. Quem nunca a disse tente permanecer deste lado da barricada. Quem alguma vez a proferiu perceba o alcance do tiro que deu porque quem a ouve morre sempre um bocadinho. Começa a morrer naquele preciso minuto.Condenar os vivos a uma morte em vida é a pior condenação que conheço. E sei do que falo porque há anos que vivo com a memória do olhar de um amigo que me contou como era viver essa condenação num corredor de terminais de um hospital oncológico. Explicou-me como era acordar e adormecer todos os dias à espera de saber se era finalmente aquele o dia em que morria.O meu amigo chamava-se Paulo, tinha a idade de um dos meus irmãos, fazia mergulho com eles e não lhe apetecia nada morrer. Muito pelo contrário, adorava viver, tinha uma predilecção especial pelo fundo do mar e contava tudo o que via. Passava horas a fio dentro de água e tinha o sonho de viver uma vida longa, que lhe permitisse explorar aquele mundo líquido de luz e sombras. Aos 20 anos diagnosticaram-lhe um cancro e, como era novo, tudo aconteceu muito rápido. A doença evoluiu muito depressa e em poucos meses ele estava acamado na ala dos doentes terminais. Era duro visitá-lo porque era Verão. Fora do hospital havia sol e fazia calor, todos estávamos de férias, íamos à praia e mergulhávamos no mar de consciência pesada por podermos fazê-lo com inteira liberdade.“Disseram-me que já não havia nada a fazer e puseram-me aqui nesta ala onde só estamos à espera de morrer. É terrível. À noite tenho pesadelos e não consigo dormir, mas há quem chegue a pôr as campainhas de urgência fora do nosso alcance para não podermos chamar ninguém. Acham que é tempo perdido porque vamos morrer e não sabem o que nos hão-de fazer.”Lembro-me do gesto que desenhou no ar com o braço, para me mostrar o que queria dizer. Era alto, tinha sido um desportista e, por isso, ainda tinha uma amplitude de gestos notável dado o seu estado clínico, mas, mesmo assim, a mão não chegava à campainha pendurada num fio que alguém tinha posto num lugar realmente impossível de alcançar. Impressionou-me na altura e ainda hoje me faz impressão que haja profissionais de saúde sem vocação nem coração.Paulo passou o último mês da sua vida naquele corredor de terminais. Morreu num dia que amanheceu igual aos outros, cheio de sol e de luz. Nunca mais me esqueci da luz desse dia.Há profissões na vida, como as que a referi e outras que para além do vencimento que se aufere, é preciso ter vocação para elas. É preciso, é necessário podermo-nos dar aos outros. Só assim podemos ser verdadeiros profissionais."

Laurinda Alves, in "Público"

1 comentário:

solange disse...

Sem dúvida!!!
Há profissões, que só com vocação. Aliás, deveria ser assim com todas.
Fazermos aquilo de que se gostamos, deveria ser um direito. Trabalharíamos todos com alegria e vontade d fazer mais e melhor. Infelizmente, ainda há, ou cada vez há mais , médicos e outros profissionais da saúde, que "escolhem" essa profissão porque têm emprego garantido. QUE PENA, para todos nós. Esta história é muito triste. Pensar que não é única, ainda faz doer mais.