
Mas eu tive muita sorte. Na casa da minha avó havia livros, e de noite, ao serão, era hábito uma pessoa da família ler em voz alta para as outras ouvirem. Ora sucedeu que eu comecei a ler muito cedo, e aí opor volta dos oito anos, passei a ter a meu cargo parte dessa leitura. Eram livros para adultos, histórias de vidas muito dramáticas como então se usava, amantes que se desentendiam e se matavam, primos que queriam casar com primas e não conseguiam, namorados que os pais não aceitavam e abalavam para sempre, amantes que se desentendiam, filhos que os pais abandonavam dentro dos berços, e assim por diante. Escusado será dizer que eu não lia os livros completos, só lia umas páginas, e algumas palavras mais difíceis apenas as soletrava, mas apercebia-me muito bem daquele clima pesado, e de noite quando ia para a cama não conseguia dormir, pensando que a vida dos adultos era demasiado complicada, que eu mesma não gostaria de crescer. A dada altura, porém, encontrei forma de ultrapassar a situação – Era verdade que na escola eu tinha de escrever sobre as propriedades da água, do vinho, do boi, das plantas, da pesca e do Mar dos Navegantes? Pois bem, mal acabava de me desembaraçar dessa tarefa, num caderno à parte, eu escrevia frases a meu gosto de modo a fazer as personagens dos livros dos adultos mudarem de vida. As histórias da noite não podiam ficar assim. Nos meus cadernos, os filhos encontravam os pais, os amantes casavam com quem queriam, eu não deixava os assassinos entrarem para a prisão se acaso gostava deles, e metia-os numa masmorra bem funda se eram uns patifes sem remédio. Quantas vezes as crianças órfãs das histórias que eu lia aos serões em voz alta, eu não as fiz serem visitadas pelos pais, de surpresa, na noite de Natal! Chegavam embuçados, retiravam o disfarce e diziam – “Sou eu, aqui estou, venho de muito longe, meus filhos!” E claro que para enfeitar essas noites, eu descrevia a neve que nunca tinha visto, e o céu estrelado que eu via muito bem mas ao qual acrescentava outras estrelas. Então foi assim que comecei, sozinha, a inventar um mundo para substituir aquele que outros tinham inventado antes de mim. Praticamente sozinha, sem ajuda de ninguém.
Por isso mesmo eu imagino como será bom ser-se aluno desta escola, poder em cada manhã sentar-se a pessoa nos bancos da sala de aula, abrir os cadernos e encontrar professores capazes de lhes ensinar a ler livros próprios para a sua idade e sua imaginação, professores capazes de ajudar a colocar as palavras certas nos locais exactos das frases que estão inventando. Professores e pais que sabem que ajudar uma criança a ser autor equivale a ensinar uma pessoa a ser dona da própria vida, e esse é um presente para sempre.
Lídia Jorge,
in “ A minha cidade Loures”, Editorial Planeta, Fev. 2009