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quinta-feira, setembro 30, 2010

Reconstruir as ruínas imensas que nos rodeiam

Algumas vezes sabemos, dentro de nós, que devemos fazer qualquer coisa semelhante a plantar uma árvore, mesmo sabendo que nunca comeremos dos seus frutos, nem descansaremos à sua sombra.
Ou descobrimos que devemos aplicar-nos, não tanto ao nosso pequeno problema, mas a reconstruir as ruínas imensas que nos rodeiam.
E nunca, como então, somos tão grandes. E nunca, como então, estamos tão perto de nós mesmos.
Paulo Geraldo

quarta-feira, setembro 22, 2010

Sensatez


Chegada a altura,
parte sem passos,
voa sem asas,
mas relembra
sem dores.
Cresce na mudança,
amacia o silêncio,
e fala baixinho,
pausadamente,
para que as aves
não levem o sonho
em direcção ao Sul.

maria eduarda

domingo, setembro 19, 2010

Diário de barro

O princípio de algo muito desconhecido não é forçosamente favorável à alma humana, oferece demasiada relatividade e é quase sem referências. O que está fora deste corpo é-me tão longínquo neste momento, que parece irreal de tão não familiar.
Para absurdidade, basta estar aqui lançada numa rua desconhecida e comprida, tendo como paisagem frontal um depósito atarracado de água entre uns parcos bancos de jardim desajeitadamente intencional.
...   as primeira impressões são analíticas e mal humoradas, ainda que o espírito sensato busque desesperadamente o equilíbrio harmónico (todos os anos no fim do verão, este desenlace com o habitual acontece-me).
Sentada à mesa, do lado direito existe uma lareira a usar e em frente uma porta imensa cheia de vidros, onde se esbate o meu reflexo também sentado...acho que é o único sinal de vida aqui existente, a simplicidade sombria de uma forasteira. O demais está acalentado por um cheiro de estranheza.
Vejo o dito espaço de cama e as sempre mesinhas aos pares, a soletrarem só os humanos são gares onde se penduram solidões como tiras de corpos e eu, sempre sem adivinhar por onde sair para o dia lá fora aqui dentro, se pela direita num namoro ao desalinho dos cds, se pela esquerda agarrada à ideia de não tropeçar na cauda do candeeiro domesticado pelas riscas do tapete.
“ Barco do Amor, Barco do Amor”... o quarto sem mais passageiros que eu imaginando. A sua acastanhada quadratura atada à memória de um outro outono num outro acastanhado quarto de uma outra rua num outro canto do país com outras amabilidades e outros cantos de boca a jorrarem legendas.
Os passos não retidos no tempo a tornarem-me oleira... não aprecio viver com o passado aconchegado, como um pescoço antigo no seu cachecol de lã, se o não posso tornar presente entre os dedos estremecidos de agora.
É outro alguém que lá está, no reflexo dos vidros em frente – imagino a sua história de vida ... algures.
Peço emprestado - mal me envolvi com o não saber de mim aflita com o pensamento e tudo fora de sítio – um rádio de qualquer tamanho (como quem anseia por uma refeição farta, a três quartos de uma grande viajem) para precisamente, localizar-me nalguma melodia!
Que fazer dos dias a presentear ao vento, ao vento que não varre a soleira da porta que dá para onde ?
“ É por tudo o que em nós corre que se vive e que se morre”, cantarolo uma música...

1 Setembro, Almeirm,  anos noventas
Diário de Barro

sábado, setembro 18, 2010

a propósito de um livro...

" Chegando em casa não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abrio-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim"
Clarice Lispector

quinta-feira, setembro 16, 2010

De livros e editores

A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, a pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e portanto não devia haver cursos de escrita criativa

(um paradoxo nos termos)

mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos, expressão roubada a Shakespeare

(we few, we happy few, we band of brothers)

capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias. Um livro é mais uma orelha que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor quem conversa. O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se reflectem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente activo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, excepto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores ou são ignorantes ou são vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro. Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. A casa alemã onde estou, por exemplo, possui um catálogo honesto, dividido em duas partes, literatura e best-sellers. O argumento temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal. Pasmo com as listas dos tops:

ficção, dizem elas, quando a ficção não existe a não ser nas obras rasteiras. Se me dissessem que escrevia ficção sentia-me insultado: ficção que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro.

Vende menos? Decerto, mas há-de vender sempre. Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparece amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há-de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos. O que me aborrece na Arte são os comerciantes que giram em volta dela, sem lhe tocar, porque tiram o seu alimento do efémero. Faz pouco comecei uma biblioteca na empresa onde estou.

Tolstoi foi o primeiro: ao receber o livro impresso reparei que as últimas três páginas eram propaganda a lixo. Como se pode, no fim de um livro de Tolstoi, fazer aquilo? Desonestidade? Ignorância? Não faço ideia de quem é o responsável mas devia ter sido fuzilado no berço: Tolstoi de mistura com livros de cozinha e ficções. Recomecei a colecção: até agora não repetiram a indignidade. Pergunta:

Como vão os livros da biblioteca?

Resposta:

Pingam

e ainda bem que pingam. Se vendessem às grosas é que eu ficava alarmado. Os bons livros são para pingar eternidade fora: o Mondego começa gota a gota; a água suja basta virar o balde e encharca-nos. A água do balde acaba logo. O Mondego não tem princípio nem fim.

Pingam:

e que maravilha pingarem. À força de pingarem hão-de engrossar irrestivelmente, enquanto os baldes se enferrujam, amolgados, num canto do jardim.

E o que interessa

(volto à Gide)

o amanhã? A gente vive no hoje, pá, o Horácio que se dane. Que se dane a Coroa, o que vale a pena são as coroas e essas já cá cantam. O problema é que, se alguma nova editora aborda a minha agência, não começa por falar em dinheiro: fala nos nomes do catálogo. Todos eles pingam. Mas dão prestígio a uma Casa. Respeito demasiado o meu trabalho para o deixar à venda numa loja dos trezentos.

António Lobo Antunes

domingo, setembro 12, 2010

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Afinal a bala é só o começo do barulho nos olhos, provocado pelo silêncio de quem se está a afastar, depois que deixou a bomba na concha das mãos de alguém.
Não se fica para dar apoio moral a quem se deve matar, nem a uma distância suficiente para ainda fazer-lhe chegar umas palavras de conforto na viajem da agonia, o ideal é desaparecer-se na mata como uma lebre que persegue a vida, deixando apenas o movimento da folhagem ainda a estremecer na visão de quem segura a bomba, ainda naquela confusão amorosa de que só pode ser uma flor, esta que lhe sobeja. As palmas das mãos do coração não são as que estão vazias e que se arrumam na estante dos bolsos, como uma coisa de que se vai precisar mais tarde. Tudo quanto se faz sonhar está lá inteiro, sem outro destino que seja muito diferente do de uma confundida flor.

segunda-feira, setembro 06, 2010

Crónica de muito amor

O João trouxe-me um Santo António pequenino de Pádua: comoveu-me que se tivesse lembrado de mim. Na minha família não se fala de mariquices mas, de vez em quando, há gestos destes, de ternura escondida, como quem não quer a coisa. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar? Pelo menos entre nós é assim: não há elogios, não há censuras, raramente há perguntas. Para quê? Há um estar ali que é já tanto. Diz-se sem as palavras e percebe-se que se diz e o que se diz porque o clima, não sei explicar de outra maneira, se torna diferente. Não falamos do que cada um faz: a gente sabe. Do que cada um sente: a gente sabe. Não se fala do sofrimento, não se fala da alegria: a gente conhece. É melhor desta forma. Uma única ocasião o meu pai fez-me uma confidência, sacudiu-a logo com a mão

- Chega de pieguices

e alegrou-me que se penitenciasse por transgredir as regras. Não há efusões, não há gestos e, no entanto, as efusões e os gestos estão lá. Quem souber ver que veja, quem não souber é porque não pertence à tribo. Não há lamentos: porque é que hei-de lamentar a minha sorte, interrogava o grego. Não há censuras, não há críticas, salvo em ocasiões muito, mas mesmo muito, especiais. O Zé Cardoso Pires percebia isto

- Vocês estão muito ligados - disse-me um dia, e mudou logo de paleio.

- Nenhum escritor gosta de falar do que escreve - afirmava ele. E, realmente, nunca falámos um ao outro do que escrevíamos. Quase todos os dias conversávamos mas não se tocava nesse assunto. Quando muito

- Estás a trabalhar?

e acabou-se. Ou

- Não estou a trabalhar

e acabou-se. Uma tarde telefonou-me

- É para te dar os parabéns (porque ganhei um prémio) - desviou logo o assunto e isto é o cúmulo da amizade. Foram os parabéns que, até hoje, mais prazer me deram. Até as nossas dedicatórias mútuas eram secas: Para o António do Zé, Para o Zé do António e um rectângulo à volta, a cercar as palavras, a fechá-las lá dentro. O rectângulo, claro, era o mais importante, e o que estava naqueles quatro riscos, meu Deus. Maior elogio mútuo

- Belo livro

maior crítica mútua: silêncio dentro de um soslaio breve. Não, maior elogio:

- Posso ser amigo de um médico, de um engenheiro, de um pedreiro. Para ser amigo de um artista tenho que admirá-lo.

Passeávamos de braço dado na rua. Com o meu irmão Pedro, por exemplo, darmos o braço é fazermos chichi juntos, no escuro, junto à cascata do jardim dos meus pais, com um comentário sobre o jacto respectivo. Depois sacudirmos os pingos ao mesmo tempo porque a pila não sabe fungar. Então abotoamo-nos e cada um vai para o seu lado, em silêncio. Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade, a olharmos para baixo, cheios de duplos queixos. Tanto che che che nesta frase. Fazer chichi na rua é um dos meus prazeres, devo ter sido cachorro noutra encarnação. Detesto urinóis, retretes: haverá alguma coisa que se compare à exaltação de mijar contra uma parede? Às vezes, a seguir ao jantar, digo ao Pedro

- Já mijaste?

sabendo que ele estava à minha espera para essa celebração da cumplicidade. Nem que sejam três gotas faz-se um esforço. Vemos as árvores, vemos o muro, não nos vemos um ao outro mas estamos ali. Nem quero pensar na ideia de fazer chichi sozinho. No fim pergunta-se

- Como é que estás?

sabendo que o parceiro se cala. Depois cada um no seu carro, sem mais palavras. Um atrás do outro e, a certa altura, separamo-nos, com um sentimentozito de despedida que custa. Quer dizer não custa assim tanto, custa um bocadinho e passa. Eu vou fazer redacções, ele vai fazer não sei o quê: pouco importa. Importa que durante uns momentos estivemos juntos. Agora interrompi esta crónica porque fui lá dentro espreitar o Santo António antes de lhe pôr o ponto final. Que pena um ponto final ser tão pequenino.

A. Lobo Antunes