Uma língua, num instante dado, ainda não existe, noutro instante já poderemos identificá-la, reconhecê-la, dar-lhe nome. Entre esses dois instantes, por assim dizer unívocos, é grande a dificuldade de apurar até que ponto o que há-de ser já está sendo, ou se o que foi já se transformou o bastante para que seja possível antecipá-lo como forma do que será. É a mil vezes repetida metáfora da crisálida, vida entre duas vidas, simultaneamente criadora e criatura. Assim se terá feito a passagem do latim ao português, com aquela crisálida linguística pelo meio a tentar chegar aos mesmos significados através de outros significantes.
(...)
É por isto que alusões à hora, ao instante, ao momento, à época, regressam com insistência a uma reflexão que deveria orientar-se unicamente para a situação actual, uma vez que é do estado actual da língua portuguesa que me propus ocupar aqui. Aqui que, confesso-o, me fosse de grande gosto, além do proveito que me traria, saber que causas se congregaram para que o português escrito, e presumo que também o falado, atingisse um tão alto grau de beleza e precisão no século XVII, por exemplo, e que enfermidades o atacaram depois e o trouxeram, com algumas intermitências fulgurantes (Almeida Garrett em primeiro lugar), a esta outra crisálida em que se está preparando não sei que insecto, por todos os indícios, provavelmente, um mutante.
Porém, muito mais do que saber que maleitas terão surgido nesse e noutros passados, importaria averiguar as causas, e propor os remédios, se ainda os há, para a acelerada degradação que está acontecendo na língua portuguesa, essa que tanto nos envaidece chamar a língua de Camões, sem nos perguntarmos se o mesmo Camões não a cuspiria da sua boca.
Eu sei, ai de mim, que os optimistas são doutro parecer: dizem eles que a língua não precisou de quem a cuidasse durante todos estes séculos e nem por isso se finou, que uma língua é um ser vivo, como ele iminentemente adaptável, que essa capacidade de adaptação é a própria condição da vida, e que, outra vez metaforicamente falando, depois de bem baralhados os naipes, sempre estarão na mesa as mesmas cartas, isto é, ainda haverá língua portuguesa bastante para que os portugueses saibam do que estão a falar. Oxalá.(...)
José Saramago, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, 15 de Novembro de 2000
1 comentário:
Escritor e homem GENIAL!!!
A entrevista (no canal 2, na 6ªfeira passada, por jornalistas da RR e do "Público)foi excelente!!! José saramago continua a surpreender-nos! A entrevista foi publicada no jornal "O Público", no domingo passado, e logo que possa colocarei aqui uns excertos.
Enviar um comentário