Exercício de Despojamento
Há a casa, um quarto, um escaparate ou uma estante, um armário com alguns brinquedos. Regressa-se a ser pequeno.
A mãe tensamente diz, despacha-te que temos que fugir, as tropas vêm aí, não nos podem encontrar nem ver em movimento, diz ainda, entra rapidamente para dentro do carro, onde está o resto da família.
Fica-se a olhar para os brinquedos e pergunta-se à mãe se se pode levar algum. Ela diz que sim, mas que não todos, que há coisas imprescindíveis para carregar.
Escolhe-se um e outro, deixa-se outro e pega-se noutro, abraça-se outro e deixam-se três, olha-se para os outros sabendo que nunca mais se lhes vai ver a desgastada forma, a cor dos instantes carcomida, o cheiro neles das mastigadas tardes, e entretanto a mãe chama como se tivesse uma longa cauda essa palavra nos ouvidos.
Com as pequenas mãos cheias de poucos brinquedos, continua-se a largar uns e a agarrar noutros e não existe isso da possibilidade que é decidir entre eles nem de ir para o carro, sem todos eles.
A mãe continua numa aflição aos sobressaltos enquanto se nos esfarela a infância para trás amontoada nos seus grãos numa prateleira escura e a voz da mãe dispersa-a, como uma mão protectora que fere. Cada vez mais insistente, indica-nos sítios também desencontrados, ninguém deve adivinhar que não queremos morrer já ali.
Os brinquedos jogados à noite da prateleira ainda são olháveis, mas cada vez mais no longe opaco com que a distância nos endivida.
Corremos sós por uma rua diferente. As tropas estão ali e nós entramos no futuro por uma pequena janela, que nos filtra de tudo.
Há a casa, um quarto, um escaparate ou uma estante, um armário com alguns brinquedos. Regressa-se a ser pequeno.
A mãe tensamente diz, despacha-te que temos que fugir, as tropas vêm aí, não nos podem encontrar nem ver em movimento, diz ainda, entra rapidamente para dentro do carro, onde está o resto da família.
Fica-se a olhar para os brinquedos e pergunta-se à mãe se se pode levar algum. Ela diz que sim, mas que não todos, que há coisas imprescindíveis para carregar.
Escolhe-se um e outro, deixa-se outro e pega-se noutro, abraça-se outro e deixam-se três, olha-se para os outros sabendo que nunca mais se lhes vai ver a desgastada forma, a cor dos instantes carcomida, o cheiro neles das mastigadas tardes, e entretanto a mãe chama como se tivesse uma longa cauda essa palavra nos ouvidos.
Com as pequenas mãos cheias de poucos brinquedos, continua-se a largar uns e a agarrar noutros e não existe isso da possibilidade que é decidir entre eles nem de ir para o carro, sem todos eles.
A mãe continua numa aflição aos sobressaltos enquanto se nos esfarela a infância para trás amontoada nos seus grãos numa prateleira escura e a voz da mãe dispersa-a, como uma mão protectora que fere. Cada vez mais insistente, indica-nos sítios também desencontrados, ninguém deve adivinhar que não queremos morrer já ali.
Os brinquedos jogados à noite da prateleira ainda são olháveis, mas cada vez mais no longe opaco com que a distância nos endivida.
Corremos sós por uma rua diferente. As tropas estão ali e nós entramos no futuro por uma pequena janela, que nos filtra de tudo.
3 comentários:
Forte e marcante o que partilhas hoje...
Que difícil deixar-se assim tanto para trás, especialmente quando ainda se é pequeno.
Também trago memórias tristes de uma Terra onde gostaria de ter ficado, se em Paz.
Lembro-me, já depois da independência, de termos de nos proteger debaixo de uma mesa ao ouvir os aviões... De ver alguma da destruição em casas, restaurantes e ruas que me eram familiares...
E recordo bem a cara das amigas com que brincava na rua e nem sei onde estão!
Memórias…
Beijos
Este texto é um exercício enquadrado numa série. Não é biográfico. Na verdade comportei-me de modo totalmente diferente, quando na situação de partida.
Este texto é genial!!!
E é-o por mil e uma razões. Tenho eu pena de n ter tempo para dizer, aqui, tudo o que este texto me traz à memória.
E para além da informação que transmite, o modo como as palavras se entrelaçam e ganham sentido é, de facto, de mestre.
Vou imprimi-lo, voltar a lê-lo e dar a ler a quem, às vezes, n entende quem passou, ou viu alguém passar, por situações como a que é descrita.
Fiquei com vontade de escrever sobre esse tempo, essas memórias. Se a ministra nos desse um tempinho só para nós!!!! :)
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