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sexta-feira, maio 29, 2009

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Foto:G.Ludovice 2006 ANGOLA

Exercício com uma rolha

Está-se enraizado dentro de um lago, afastado o suficiente da margem de modo a que se lhe não chegue senão com o olhar, mas misteriosamente temos pé ou estamos sobre algo que nos permite que a água não nos cubra acima dos ombros.


Não importa perceber por que motivo lá estamos, porque teríamos a mesma resposta que temos para explicar por que estamos aqui nesta vida. Seriam muitas e nenhuma.
Parece que ali estando, temos também um sonho, um majestoso aveludado que por vezes se confunde com uma necessidade ou com o sentido da nossa existência.

Estamos capacitados de músculos para o agarrar como se ele pudesse ser uma presa ou de inteligência para o integrarmos plasticamente no nosso quotidiano ou ainda a natureza facilitou-nos uma espécie de antenas, para de imediato o distinguirmos da vulgaridade.
Imaginemos que esse veludo nos chegará em forma de rolha.

E eis que a uns metros do nosso corpo, surge boiando a rolha.
De todas as vezes o entusiasmo, o desespero, a vontade, a cegueira, a ambição, o merecimento ou a saudade provocam considerada agitação.
Os braços nascidos para assinalar, erguem-se então espantados e deixam-se repetidamente cair robustos nas águas em que estamos metidos, desenhando círculos atrás de círculos na sua lisa superfície, enquanto por tais movimentos criados no auge do desassossego, a rolha que se aproximava naturalmente e sabe-se lá porquê, é de súbito levada na nova ondulação e afasta-se para o parecido com o inacessível.
Um tal objecto flutuante, permite-nos a visão da sua proximidade e ao mesmo tempo ensina-nos a medir a habilidade com que vivemos.
Notemos como a quietude a teria trazido.
in: Contos e exercícios

3 comentários:

dinamene disse...

Maravilhoso, mesmo! Adorei ler este texto. Bonita analogia…

É curioso como tantas vezes nos agitamos em busca de algo (a rolha) e como a “a quietude a teria trazido”…

Talvez seja preferível, apesar do desassossego, tentar movimentos suaves, pacientes, determinados…

Bjos

solange disse...

Realmente, um belíssimo texto!
Pensar assim, escrever assim, parece-me "divino"!
Como és bem humana, só posso agradecer-te por partilhares estes belíssimos textos connosco, obrigando-nos ao exercício.

maria eduarda disse...

Estarmos atentos, é essencial. Saber do que precisamos, e aproveitar ao máximo o que de bom vem ao nosso encontro!