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terça-feira, junho 24, 2008

O menos desolhado


O azul de raridade que o cobre nas amplas costas, é uma pista ali nos prontos arredores.
Funciona bem, tal como a máquina nova no pulso a rigor, o esquerdo, o relógio nascido de mostrador grande, tudo no seu propósito de conquistar nos outros não apenas os momentos dos olhos mas também, os próprios pensamentos com suas inclinadas suposições, essas hipóteses que roubam tempo à cabeça dos demais e os fazem permanecer a pensar em nós, até a inventarem histórias sobre a origem das nossas felicidades de cara, estampadas fundo.

Esse tempo que usamos da vida dos outros era para ele uma vitória, tinha assim onde existir de modo mais completo, alargando-se abusadamente em outras vidas, ocupando-lhes memórias como se enche uma casa de coisas que se encontram um dia, que não servem de muito, mas ficam lá bem porque o vazio é sinal de pobrezas e ausência de virilidade para os seus moradores.

Antes experimentara a dengosa brancura dos dentes, para subir em considerações no seu estatuto, ser um pouco mais do que um simples homem de futuro oferecido, por o não ter e ser-lhe mais certo poder ofertar aquilo que não havia.

Depois aprendeu por observação severa, que todos os homens com poder acrescentavam utensílios ao sorriso, não bastava o retrato da boca a oferecer o mundo como se ele existisse e tivesse porta de entrada.
Foi a si somando em invenção, também essa sorte deles, que é trazer uma valiosa mulher atrás do seu embelezamento de vida, com pegamento de coração, talvez até.

As grandes conquistas quer fossem das cidades, quer fossem dos povos, quer das mulheres, envolviam sempre coisas que, por poderosas, passavam involuntariamente de umas mãos para as outras. Sabia-o do compêndio de História, reachado numa prateleira de asfalto.

Afastado da possibilidade da feiosa correia de plástico, conseguiu obter uma de pele bem lustrada. O seu marcador de tempo tornou-se o primeiro movimento em direcção ao topo, esse lado que se tem quando se tem também alguém, que faz figura.
Já não mais seria alguém desimportante, estariam desde aí nele concentrados pasmos de caras e habilidades de conversa.

Pela hora da abertura das humanidades, aprendidas moralmente na educação das escolas com cadeiras, roupa em segunda mão chegava das terras, onde o esplêndido mostrador do seu relógio já não é furor para olhos alheios, antes pareceria arrojado na insólita negação de si mesmo, mas é verdade que em vez desse objecto, pode a sua existência ser ainda antes tomada como iluminação em noite crescente, pelo azul turquesa conseguido no casaco das lides internacionais.

A sua grande apoteose é, no entanto, de diferente natureza, ultrapassando mesmo a desvida dos próprios frágeis objectos na sua duração, depois que foi o rebentamento da mina que o abocanhou.
Quando ao prosseguir a compasso com o seu tic-tac encolhe a perna que não já pode possuir, fica sim na lembrança dos outros mas em estranha elegância, difícil até de se tornar moda, ganhando nesses respirados entretantos uma inconsciente dignidade única, no seu incopiável modo de fazer caminho.
O que foi original sobre o físico de alguns outros, é apenas estratégia garantida na ilusão em si.

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Gabriela Ludovice

5 comentários:

didium disse...

Gostei muito de ler este teu conto. Há seres que, na sua ingenuidade, se adornam completamente, talvez para olvidar, (ou tentar que os outros não se fixem)em partes muito suas, que não podem ser "desassumidas".

G. Ludovice disse...

:)
será o equilíbrio ainda assim?

bj

didium disse...

É o equilíbrio que encontram para viver ou sobreviver!

didium disse...

Neste caso o pormenor físico deveria ser um talvez motivo de "orgulho"

G. Ludovice disse...

Mas não o pode ser, numa sociedade em que a imagem da perfeição é uma chave para uma vida com mais suposta qualidade. O mundo é um bairro de defeitos não assumidos,fazê-lo é já ser de outro bairro..