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quinta-feira, agosto 14, 2008

A espiral

A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa.Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto ascendente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificudade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.

Fernando Pessoa
27-7-1930

3 comentários:

dinamene disse...

Pessoa realmente é surpreendente... como "brinca" com as palavras!!!....
As palavras podem, realmente, definir tudo, até o indefinível!

Adoro espirais...
E, já agora, aproveito para divagar...

As espirais lembram-me a própria Vida, que se desenvolve em círculos, com diferentes ciclos, ascendentes e descendentes.... Como se a uma fase/circulo da Vida se seguisse outra/o, infinitamente (além Vida?).

Didium,
É fantástico tudo o que vais partilhando, de Fernando Pessoa e seus heterónimos, connosco.

beijos

didium disse...

Dinamene,
Já reparaste que a espiral é o
oposto da morte? Nunca acaba!Será também como tu disseste, a além vida?
Ou então é a continuidade das gerações. Morre-se, mas há sempre quem fica,que avança na espiral.

solange disse...

Como eu, céptica, Didium!!! Já fomos mais!
As duas interpretações são possíveis. Acreditamos no que queremos, claro. Seria bom podermos acreditar na espiral da VIDA, que continua infinitamente. Consolamo-nos, e até é bom, também, ao pensar que os nossos descendentes continuam, avançando a espiral.