Páginas

domingo, agosto 03, 2008

Chopin é um frango

Os meus pais a quem a minha indiferença escolar preocupava.
(passei o liceu a fumar às escondidas e a pasmar para a mulher do farmacêutico e a universidade a jogar xadrez num cubículo sem janelas logo a seguir ao vestiário)
trataram de arranjar explicadores decididos a meterem-me na cabeça, à força, o que me recusava a aprender. Entre outros carrascos contrataram, tinha eu 13 ou 14 anos e uma alergia às aulas, um homem gordo que se deveria ocupar a fazer-me entrar em êxtase com o desenho geométrico, amontoando cubos, cilindros e pirâmides, a tracejado e a cheio, em papel cavalinho. Era num segundo andar ao Jardim das Amoreiras que cheirava a entretela e a almôndegas, o carrasco, o careca, suava de desespero a rosnar
- Camelo
enquanto eu, em lugar de ouvir, escutava as lições de piano do prédio vizinho no qual uma menina
(tinha a certeza que era uma menina de laço cor-de-rosa no cabelo, arame nos dentes e soquetes brancos)
tocava Chopin como quem arranca penas a um frango vivo. O sofrimento do frango quase me fazia chorar de puro dó e no dia seguinte dava por mim perplexo diante da canja do almoço, à cata de semifusas entre as bolhas de azeite e a garantir à minha mãe afastando o prato com as costas da mão
-Não quero comer Chopin
com ela a olhar também a sopa, receosa de que houvesse uma Polonaise ou um Nocturno a flutuar entre os miúdos. A minha repulsa por carne de galinha ia aumentando com as aulas do Jardim das Amoreiras em que me apetecia abandonar o careca para salvar o compositor moribundo dos dedos assassinos da menina de arame nos molares, levá-lo para casa debaixo do braço e deixá-lo em paz na capoeira a escrever as suas valsas repimpado no poleiro. Sempre que a canja regressava eu ia argumentando inabalável
-Não mastigo músicos
recordado do Chopin assassinado, três vezes por semana, à esquerda da projecção das esferas.
(...)
Estou certo que aos domingos todo o mundo engole Chopin com batatas fritas Pala-Pala, juntamente com as queijadas compradas no passeio de Opel a Sintra. Ninguém fala. Ninguém se preocupa. Ninguém se interessa. Ninguém protesta. O Greenpeace não faz nada. A Amnistia Internacional emudece. Os Direitos do Homem omitem. Mas posso assegurar-vos que sempre que me coloco à porta de uma cervejaria de churrascos oiço as tripas dos clientes que saem de palito na boca a maldizer o Governo
(as pessoas de palito na boca maldizem o Governo e as que nem palito têm maldizem a vida)
oiço as tripas dos clientes, dizia, tocarem borborigmos de claves de sol que uma camada de bagaço amortece.

António Lobo Antunes, Algumas Crónicas


1 comentário:

solange disse...

Genial!!! Adoro ler e reler as crónicas do António. Faço colecção!!!