E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...
- A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
- A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11...Rua 11...)
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa historia inconsequente...
Terra!
Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando,
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...
Páginas
domingo, agosto 31, 2008
sábado, agosto 30, 2008
A ironia em Fernando Pessoa
"Porque o facto significativo acerca dos portugueses é que eles são o povo mais civilizado da Europa. Eles nascem civilizados porque nascem aceitadores de tudo.(...)
Quando um português se vai deitar faz uma revolução porque o português que acorda na manhã seguinte é diferente. É precisamente um dia mais velho, um dia mais velho sem dúvida alguma.
Outros povos acordam todas as manhãs no dia de ontem; o amanhã está sempre a vários anos de distância. Mas não esta estranha gente. Move-se tão rapidamente que deixa tudo por fazer, incluindo ir depressa. Não há nada menos ocioso do que um português(...).
No que se refere à literatura portuguesa moderna, o melhor é virarmos a esquina quando ela aparece."
Fernando Pessoa, in "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação"
sexta-feira, agosto 29, 2008
Viajar
"Um homem precisa viajar...
Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV.
Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu.
Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor.
E o oposto, sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto.
Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser.
Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver!"
Amyr Klink
Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV.
Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu.
Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor.
E o oposto, sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto.
Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser.
Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver!"
Amyr Klink
NOX
Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...
Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...
Oh! antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,
E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!
Antero de Quental
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...
Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...
Oh! antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,
E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!
Antero de Quental
quinta-feira, agosto 28, 2008
Gramática de superfície
Juventude e Velhice
Nada menos exacto do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes reciprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso não quer dizer que se seja necessariamente intolerante e retrógrado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e contribuíram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a mocidade literária, negando embora sistematicamente o passado, é nele que se inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.
(...) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços; nem só a reflexão dos velhos; não está apenas na audácia de uns, nem apenas na experiência dos outros; realiza-se pela magnífica integração das virtudes contrárias, sem a qual não seria possível, em todo o seu esplendor, a marcha da humanidade.
(...) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços; nem só a reflexão dos velhos; não está apenas na audácia de uns, nem apenas na experiência dos outros; realiza-se pela magnífica integração das virtudes contrárias, sem a qual não seria possível, em todo o seu esplendor, a marcha da humanidade.
(...) Como admitir o divórcio entre novos e velhos - invenção antinatural dos conventículos literários de todos os tempos -, se os velhos têm nas novas gerações, penhor radioso do futuro, o instrumento de compreensão e de difusão da sua obra, e se os novos devem aos velhos a formação do seu espírito, a educação da sua sensibilidade e a opulenta capitalização de riquezas da língua em que se expressam?
A paz entre idades sucederá um dia, decerto, à paz entre as nações - quando a velhice egoísta reconhecer, finalmente, que não deve menosprezar os moços, antes facilitar-lhe o caminho da vida, e quando, por seu turno, a juventude impaciente chegar à convicção de que não é atropelando nem injuriando que se vence, e de que, quando os jovens se instalaram no planeta - já os velhos o habitavam.
Júlio Dantas, in 'Páginas de Memórias'
quarta-feira, agosto 27, 2008
A amizade
A melhor prova duma real amizade está em evitar os compromissos entre aqueles que se estimam. Ainda que devendo muito aos que muito me louvam, eu não quero ser-lhes obrigada pela gratidão. Mas sim grata porque estou com eles, devido a circunstâncias que a todos nós agradam e são um laço mais entre nós, sem constituírem um dever.
Eu pretendo dizer da amizade o que Diógenes dizia do dinheiro: que ele o reavia dos seus amigos, e não que o pedia. Pois aquilo que os outros têm pelo sentimento comum não se pede, é património comum. Neste caso, a amizade.
Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'
terça-feira, agosto 26, 2008
Escrever é esquecer
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm.
A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'
Meninas e meninos
Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de meninas e meninos
a defender a liberdade de armas na mão.
Todos já vimos
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão
retratos de cadáveres de meninos e meninas
que morreram a defender a liberdade de armas na mão.
Todos já vimos!
E então?
Fernando Sylvan, Lá Longe a Paz
segunda-feira, agosto 25, 2008
domingo, agosto 24, 2008
BOOM FESTIVAL 2008 - reencontro comigo
LEGENDA: PÔR-DO-SOL NO BOOM FESTIVAL, AGOSTO 08
Pediste-me mana, pois aqui te dou:
"...39 anos depois de numa fazenda em Bethel - Nova Iorque, durante os dias 15, 16 e 17 de Agosto se ter realizado o mítico Festival de Woodstock, tive eu direito ao meu entre os dias 11 e 18 do também mês de Agosto mas não em 1969... em 2008.
Sem saber ao que ia, também assim foi o Boom: um encontro de culturas, sob o signo da liberdade. Sem maldade, sem a jogadinha escondida, sem a carta debaixo da manga. Olhos nos olhos, cara a cara. Como devia SEMPRE ser.
Afinal é possível ir aqui "mesmo ao lado", a Idanha a Nova e mudar completamente o paradigma. Continuar em Portugal num local paradisíaco, onde os (bons) portugueses são uma escassa percentagem. E onde desde asiáticos a africanos, de mais ou menos excêntricos... todos se dão bem.
É afinal ainda possível sentir a partilha e assumir valores como o da solidariedade presentes em todas as horas do dia. Ver simplesmente o pôr-do-sol, dançar como se não houvesse amanhã, nadar livremente, meditar, observar simplesmente quem passa ou fazer uma escultura com as pedras que temos à mão.
Ter sede e alguém oferecer-nos água, ter fome e haver logo uma peça de fruta por perto. Um "viajante" quem sabe tatuado da cabeça aos pés, ou vestido de elfo, ou com asas douradas como um anjo, ou com qualquer fantasia com a qual simpatizava, cruzar-se connosco educadamente e simplesmente sorrir.
E tantos sorrisos que me marcaram! E outros tantos devolvi...
Energia tão positiva que chegava ao ponto de ser telepática. Pensar em alguém que ainda não tínhamos visto e no meio de 40.000 pessoas e vários hectares de terreno, em segundos ela aparecer ao nosso lado... estranho? Não. Nesta pequena mostra de universo, também ali se percebia que o "mundo é de facto redondo"...
Encarar a nudez com a tremenda simplicidade de dar o direito a quem se quer despir para que se dispa, e a quem o não quer fazer, que o não faça. O mesmo aplicável ao consumo de substâncias psico-activas. Informação com fartura sobre os efeitos, acompanhamento médico e psicológico permanente, análise gratuita das substâncias para aferir do seu grau de pureza. Tudo sem considerações de valor. Sem ferir a liberdade de cada um.
Juntarem-se centenas, milhares de pessoas apenas para ver nascer ou "sair de cena" o sol... Mas também podermos estar sós naquele "momento só nosso" com a anuência e a compreensão de todos.
Sabermos que se uma mulher/homem nos olha, ou se olhamos para alguém, não é necessariamente um olhar em busca "daquele algo mais".
E sim, tocar... Musicalizar cada segundo que passa. Oferecer ritmos e notas soltas ao viajante do tempo e do espaço que talvez não mais volte a ver. E partilhar (como o fiz) o melhor solo de sempre, com aqueles que já possuem nível técnico elevado... mas também com os que ainda agora começaram a aprender. Fazê-lo não só com os instrumentos conventuais, mas com paus, com pedras, com latas, com garrafas e com tudo o que entretanto encontramos à mão... Observar uma multidão desconhecida, de todo o mundo mas substancialmente erudita e sabedora, bater-nos palmas e entusiasmar-se... e os nossos amigos comoverem-se.
E isso tem que mudar uma pessoa. Ou por outra... tem que remexer na nossa essência e trazê-la de volta. E lembrar que estamos vivos.
E que bela que é a vida! E o que fazer com ela? Ah pois é...
O reencontro comigo, diz-me que não podemos fugir do que nos faz felizes. Ou por outra... se o podemos, está nas nossas mãos não o fazer.
O papel do dinheiro nesta equação, não pode ser per si o objectivo. Que nos aprisiona, que nos controla as horas, que nos impele a fazer coisas que não gostamos, que nos conduz ao altar do ilusório.
O equilíbrio pois: PROCURA-SE. E esse, sim! Um são equilíbrio entre o material e o espiritual.
Entre percorrer o caminho e ganhar tempo. Entre viver em comunidade e encontrar também aquele espaço que é só nosso.
A missão sempre a soube. Hesitei na via. Mas não mais fugirei dela.
Sem precipitações mas igualmente sem claudicar.
Até porque o ser humano pode fazer mais que uma coisa ao mesmo tempo! ...Mas claro que para ser verdadeiramente genial e aproveitar toda a energia... deve no meu entender, dedicar-se na sua maioria "à escolhida".
Mas adiante. Neste já imenso solilóquio a mensagem que aqui pretendo deixar é a de:
- Uma vez descobrindo, não mais fujais de vós..."
A Idade do Divórcio
Devia haver uma idade para o divórcio como há para o casamento. As desilusões domésticas têm o seu tempo para se transformarem cicatrizes que vão desaparecendo com o passar dos anos. Por isso é que nos velhos casais há uma recordação da vida em comum que se assemelha à santidade. Contam peripécias leves e dão ao passado um colorido quase caricato pela força do distanciamento em que se encontram. A verdade é que sofreram os mesmos desenganos e turbulências que os jovens arrumam e põem de lado sem dar tempo a transformarem-nos em recalques.
Agustina Bessa-Luís, in 'Antes do Degelo'
1950
1950
sábado, agosto 23, 2008
Gato que brincas na rua
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa
sexta-feira, agosto 22, 2008
"A minha Praia"
O Verão, o calor, as praias, as férias…
As férias?... as praias!
Cheias, a abarrotar, apinhadas.
Bolas de Berlim, bolas a saltar, gritos e gargalhadas, barulhos, burburinhos,
Areia pelo ar,
Gente, gente, gente
As praias superlotadas.
Há quem goste das praias assim,
mesmo que custe encontrar um espaço para a toalha
Ou que a nossa cabeça fique deitada perto do pé do vizinho
E há quem não goste…. E prefira o silêncio, o murmúrio do mar…
Também há quem nem sequer goste de praias…
A quem a areia faz comichão, o sol alergia e para quem o mar é paisagem.
As férias?... as praias!
Famílias, famílias inteiras
Com bóias, brinquedos, cremes e farnéis,
sombrinhas, toalhas, sacos, cadeiras,
Férias são férias,
E algum stress também, para não fugir totalmente à rotina.
Férias são férias, praia, gente, confusão…
As férias?... as praias!
Vermelhos, vermelhos ao sol…
Loiros, quase brancos, os cabelos,
Azul no mar, azul nos olhos fechados, dormindo deitados…
Vermelhos ou rosas, os corpos fervendo, ao sol!
Vêm de longe, onde o céu é cinzento e o sol envergonhado
Querem praia solário,
Querem levar um pouco de sol para o Inverno escuro do seu país,
Mesmo que isso lhes custe na pele, lhes queime o calor, vermelhos infernos.
Há quem queira a praia a assim, para torrar, e oiça "lá ao longe" o mar…
Felizes, felizes na água.
Boca a saber a sal, pequeninos os corpos
Roxos os lábios ignorando o frio do mar.
Meninos e meninas mergulhando, nadando, saltando e rindo.
Castelos na areia, buracos, bolos enfeitados de conchas.
As crianças querem a praia para brincar, sonhar, rir até fartar.
E a "minha praia"? Que saudades…
Gosto da praia para passear, para respirar…
Quem me dera caminhar, de novo, à beira mar,
sentir a brisa fresca e salgada
os pés pisando areia molhada.
Ai saudades de sentir esse amar,
Por todas as coisas, do céu e da terra
Amar puro, sem dor nem guerra
Por seres da areia, da água e do ar.
Quando vivia ao pé do mar, muitas vezes dirigia-me à praia,
nos meses do ano em que quase ninguém lá ia.
Fazia grandes caminhadas,
contemplando a beleza inigualável da praia ao amanhecer.
Ficava sempre a sentir-me parte de tudo aquilo,
ser em comunhão com o universo, parte de Deus.
Agora estou no campo, perto da cidade,
onde a brisa marinha não chega.
Onde os cheiros são outros e as cores muitas,
como um arco-íris de flores e de terra em exposição.
E que saudades da "minha praia"…
Por vezes falta-me a beleza da água a tocar o céu no infinito,
a luz clara do sol a tocar de dourado grãos de areia e de pessoa,
as aves debicando qualquer coisa quando a onda vai,
o meu reflexo difuso e brilhante quando a onda vem.
Então, lembro-me que trago dentro no peito, junto ao coração
um pouco da "minha praia"…
Trouxe-a comigo numa das muitas caminhadas que fiz à beira-mar.
Junto ao coração, como se lá guardasse grãos de areia e pedaços do mar.
Também na praia deixei pedaços de mim,
fios de cabelo, gotas de suor, cores dos meus pensamentos…
Por isso, mais que uma vez, amigos me disseram….
"Fui à praia, lembrei-me de ti"…
E alguns nunca estiveram lá comigo….
Talvez seja o mar, no seu marulhar, que aprendeu a sussurrar o meu nome.
Se algumas vezes me parece que estou longe de "coisas" que gosto…
Logo me apercebo que são "coisas" que trago junto ao coração e me pertencem,
e então não fico triste…
Distância aparente apenas, porque aquilo que importa está sempre junto de nós.
Para me reencontrar comigo própria, é para lá que vou
(em pensamento, porque vivo no campo),
fecho os olhos e dirijo-me à praia… Vou lá, ver o mar.
Vou e sinto aquela alegria pura, infantil,
de quem se encontra de novo no seu "esconderijo" secreto,
no seu espaço de união consigo próprio,
aquela alegria palpitando,
aquele contemplar sereno,
aquela comunhão com o Universo….
Ai saudades de sentir esse amar,
Por todas as coisas, do céu e da terra
Amar puro, sem dor nem guerra
Por seres da areia, da água e do ar.
Agora… fecho os olhos e dirijo-me à praia… Vou lá, ver o mar.
… Talvez a encontre cheia, a abarrotar, apinhada.
Bolas de Berlim, bolas a saltar, gritos e gargalhadas, barulhos, burburinhos,
Areia pelo ar,
Gente, gente, gente
A praia superlotada!
Dinamene
O Verão, o calor, as praias, as férias…
As férias?... as praias!
Cheias, a abarrotar, apinhadas.
Bolas de Berlim, bolas a saltar, gritos e gargalhadas, barulhos, burburinhos,
Areia pelo ar,
Gente, gente, gente
As praias superlotadas.
Há quem goste das praias assim,
mesmo que custe encontrar um espaço para a toalha
Ou que a nossa cabeça fique deitada perto do pé do vizinho
E há quem não goste…. E prefira o silêncio, o murmúrio do mar…
Também há quem nem sequer goste de praias…
A quem a areia faz comichão, o sol alergia e para quem o mar é paisagem.
As férias?... as praias!
Famílias, famílias inteiras
Com bóias, brinquedos, cremes e farnéis,
sombrinhas, toalhas, sacos, cadeiras,
Férias são férias,
E algum stress também, para não fugir totalmente à rotina.
Férias são férias, praia, gente, confusão…
As férias?... as praias!
Vermelhos, vermelhos ao sol…
Loiros, quase brancos, os cabelos,
Azul no mar, azul nos olhos fechados, dormindo deitados…
Vermelhos ou rosas, os corpos fervendo, ao sol!
Vêm de longe, onde o céu é cinzento e o sol envergonhado
Querem praia solário,
Querem levar um pouco de sol para o Inverno escuro do seu país,
Mesmo que isso lhes custe na pele, lhes queime o calor, vermelhos infernos.
Há quem queira a praia a assim, para torrar, e oiça "lá ao longe" o mar…
Felizes, felizes na água.
Boca a saber a sal, pequeninos os corpos
Roxos os lábios ignorando o frio do mar.
Meninos e meninas mergulhando, nadando, saltando e rindo.
Castelos na areia, buracos, bolos enfeitados de conchas.
As crianças querem a praia para brincar, sonhar, rir até fartar.
E a "minha praia"? Que saudades…
Gosto da praia para passear, para respirar…
Quem me dera caminhar, de novo, à beira mar,
sentir a brisa fresca e salgada
os pés pisando areia molhada.
Ai saudades de sentir esse amar,
Por todas as coisas, do céu e da terra
Amar puro, sem dor nem guerra
Por seres da areia, da água e do ar.
Quando vivia ao pé do mar, muitas vezes dirigia-me à praia,
nos meses do ano em que quase ninguém lá ia.
Fazia grandes caminhadas,
contemplando a beleza inigualável da praia ao amanhecer.
Ficava sempre a sentir-me parte de tudo aquilo,
ser em comunhão com o universo, parte de Deus.
Agora estou no campo, perto da cidade,
onde a brisa marinha não chega.
Onde os cheiros são outros e as cores muitas,
como um arco-íris de flores e de terra em exposição.
E que saudades da "minha praia"…
Por vezes falta-me a beleza da água a tocar o céu no infinito,
a luz clara do sol a tocar de dourado grãos de areia e de pessoa,
as aves debicando qualquer coisa quando a onda vai,
o meu reflexo difuso e brilhante quando a onda vem.
Então, lembro-me que trago dentro no peito, junto ao coração
um pouco da "minha praia"…
Trouxe-a comigo numa das muitas caminhadas que fiz à beira-mar.
Junto ao coração, como se lá guardasse grãos de areia e pedaços do mar.
Também na praia deixei pedaços de mim,
fios de cabelo, gotas de suor, cores dos meus pensamentos…
Por isso, mais que uma vez, amigos me disseram….
"Fui à praia, lembrei-me de ti"…
E alguns nunca estiveram lá comigo….
Talvez seja o mar, no seu marulhar, que aprendeu a sussurrar o meu nome.
Se algumas vezes me parece que estou longe de "coisas" que gosto…
Logo me apercebo que são "coisas" que trago junto ao coração e me pertencem,
e então não fico triste…
Distância aparente apenas, porque aquilo que importa está sempre junto de nós.
Para me reencontrar comigo própria, é para lá que vou
(em pensamento, porque vivo no campo),
fecho os olhos e dirijo-me à praia… Vou lá, ver o mar.
Vou e sinto aquela alegria pura, infantil,
de quem se encontra de novo no seu "esconderijo" secreto,
no seu espaço de união consigo próprio,
aquela alegria palpitando,
aquele contemplar sereno,
aquela comunhão com o Universo….
Ai saudades de sentir esse amar,
Por todas as coisas, do céu e da terra
Amar puro, sem dor nem guerra
Por seres da areia, da água e do ar.
Agora… fecho os olhos e dirijo-me à praia… Vou lá, ver o mar.
… Talvez a encontre cheia, a abarrotar, apinhada.
Bolas de Berlim, bolas a saltar, gritos e gargalhadas, barulhos, burburinhos,
Areia pelo ar,
Gente, gente, gente
A praia superlotada!
Dinamene
Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil
Pela falta de palavras, sabe-se a profundidade dos momentos, que sendo tempo, parecem possuir três dimensões.
Uma coisa cavada fica lá como um leito de rio antigo, amplo espaço para nenhures, aí onde tudo se desmancha linguisticamente.
A alma precisa mais do que de céu, de um lugar de pedra ou carne com nome, que se mantenha para além da linguagem.
A busca do silencio é uma tentativa paralela, só paralela disso que é muito mais que encontro, porque desigual, em espanto.
Uma coisa em atrito que se escarpa e é chão para a alma, essa coisa que não se diz.
Uma coisa cavada fica lá como um leito de rio antigo, amplo espaço para nenhures, aí onde tudo se desmancha linguisticamente.
A alma precisa mais do que de céu, de um lugar de pedra ou carne com nome, que se mantenha para além da linguagem.
A busca do silencio é uma tentativa paralela, só paralela disso que é muito mais que encontro, porque desigual, em espanto.
Uma coisa em atrito que se escarpa e é chão para a alma, essa coisa que não se diz.
Se, para possuir o que me é dado
Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.
Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!
Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!
E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento.
António Botto
quinta-feira, agosto 21, 2008
Dedico a Nelson Évora
"Para alcançar a vitória, deve colocar o seu talento no trabalho e o génio na sua vida."
Oscar Wilde
Oscar Wilde
"A vitória cabe ao que mais persevera."
Napoleão Bonaparte
"O que as vitórias têm de mau é que não são definitivas. O que as derrotas têm de bom é que também não são definitivas."
José Saramago
"A primeira e melhor vitória é conquistar-se a si mesmo."
Platão
Tít. orig.: The Knowledge of angels de JILL PATON WALSH
(…)O problema era que Palinor não podia valer-se do argumento a que qualquer sarraceno ou qualquer outro espírito exótico podia recorrer — que pertencia a outra religião e estava fora do âmbito da Igreja; e não porque o que ele negava não era determinado aspecto da doutrina da Igreja, mas algo que todos os seres humanos sabiam, ou por conhecimento inato ou graças à razão natural. Muito simplesmente, ele não podia negar Deus. Era uma blasfémia imprudente e terrível, pior do que qualquer heresia sobre a natureza de Cristo, ou a presciência de Deus, ou o livre arbítrio, ou qualquer coisa do género. Qual a desculpa concebível para que um homem como aquele incorresse em tal erro? Não se lhe aplicava de modo algum a exculpação dos estúpidos; talvez tivesse sido desencaminhado ou mal ensinado. Mas Beneditx podia evidentemente convertê-lo através do raciocínio. Aquilo que devia saber desde sempre, desde que nascera, passaria a ser apenas uma questão de interesse histórico ao ser ultrapassada pela clarividência que Beneditx lhe transmitiria. Não conseguia acreditar que fosse impossível convencer aquele homem afável e inteligente que tinha à sua frente. Beneditx tinha fé no poder da razão. Preparou-se para expor as provas que S. Tomás considerava válidas; eram cinco, se bem que uma seria certamente suficiente. E, tendo-se preparado, foi com alegria que enfrentou o seu segundo encontro com Palinor.Os dois homens iam passeando calmamente por um caminho verdejante e sombrio do jardim, com um riacho a cantar-lhes alegremente aos pés.
— Em primeiro lugar, na natureza nada se move, a não ser que seja movido por qualquer outra coisa — foram as palavras com que Beneditx abriu a discussão. Um pau que é brandido no ar é movido pelo homem que está a segurá-lo. Mas este movente tem, por sua vez, de ser movido por qualquer outra coisa, e essa outra coisa por uma outra. Esta cadeia não pode prolongar-se indefinidamente, recuando até ao infinito, de contrário chegar-se-ia a um ponto em que não existiria um primeiro movente nem, consequentemente, qualquer outro. Por isso, é necessário chegar a um primeiro movente, cujo movimento não foi iniciado por outro, e que toda a gente compreende que é Deus.
—Tenho de responder a isso? — perguntou Palinor.
— Espera. Vou apresentar-te três fundamentos sólidos da fé e verás se não te convencem.
— Estou nas tuas mãos, amigo — disse Palinor.Falava num tom grave, mas com um certo toque de afeição, quase de divertimento. Sentia o prazer que um adulto instruído sente na presença de uma criança maravilhosa, de espírito perspicaz e inocente. Aliás, ninguém podia duvidar da avidez implícita nos esforços de Beneditx para o persuadir nem deixar de ver quão bem intencionadas e benignas eram as suas tentativas. Palinor via obviamente com mais clareza do que Beneditx a dificuldade da tarefa que este empreendera; mas, como acontece com uma criança de ambições românticas, era mais amável da parte dele não ser demasiado aniquilador.
— Em segundo lugar — prosseguiu Beneditx —, no mundo sensível que nos rodeia apercebemo-nos de que há elos de causalidade. Uma coisa causa outra e é, por sua vez, o efeito de uma outra causa. Não há nada que possa ser a sua própria causa, pois, para isso, teria de ser anterior a si mesma, o que é impossível. Mas esse elo de causalidade não pode recuar até ao infinito, senão não haveria uma primeira causa e, logo, um primeiro efeito, porquanto afastar a causa implica afastar o efeito. Por isso, a percepção pelos nossos sentidos de causas e efeitos obriga-nos a aceitar uma causa sem causa, uma primeira causa eficiente, a que toda a gente chama Deus. Em terceiro lugar, há coisas na natureza que podem existir ou não existir, pois são criadas e consumidas, nascem e morrem. É impossível que essas coisas tenham existido sempre, pois tudo aquilo que a certa altura pode deixar de existir tem necessariamente de não ter existido em determinado momento. Por isso, se tudo pudesse deixar de existir, teria de haver um momento em que podia não ter existido nada. Se isto fosse verdade, ainda hoje não existiria nada, porque aquilo que não existe surge a partir de algo que já existe. Ou seja, se num determinado momento não existisse nada, nada poderia ter começado a existir e nada existiria no momento presente, o que é um absurdo. Por isso, tudo aquilo que existe não é meramente possível; tem de existir algo cuja existência é necessária. Mas a necessidade de uma coisa necessária é causada por outra coisa qualquer e não podemos ir até ao infinito numa cadeia de necessidades, como já vimos em relação aos moventes e às causalidades, pelo que não podemos deixar de postular a existência de um ser, cuja necessidade adveio de si próprio, e não só não resulta de um outro ser como é a causa da necessidade de outros seres. Para todos os homens este ser é Deus.Houve um silêncio, enquanto Palinor meditava sobre estas palavras. Chegaram ao fim do caminho que se abria sobre o vale, permitindo uma visão abrangente e suavemente descendente dos laranjais e do verde prateado dos olivais que cobriam o vale, que se tornava ora mais claro, ora mais escuro, como um lago exposto à brisa da manhã.
— Esses argumentos vão todos dar ao mesmo — disse Palinor. — Tudo aquilo que se move é movido por outra coisa; por isso, há algo que faz mover tudo aquilo que se move. Todos os efeitos têm uma causa; por isso, há uma causa donde resultam todos os efeitos. Continuando, todas as estradas vão dar a um lado qualquer, por isso há um lado qualquer aonde todas as estradas vão dar; todos os rios têm uma nascente, por isso há urna nascente onde qualquer rio começa; todos os filhos têm uma mãe, por isso alguém tem de ser a mãe de alguém; todas os instrumentos têm um fim, por isso há um fim a que cada instrumento se destina... Tenho de continuar?
— Espera — pediu Beneditx. — Estás a falar como alguém que, estando diante de uma árvore e vendo que um ramo nasce de um braço e muitos ramos de muitos braços, nega a existência do tronco da árvore. Se seguires a multiplicidade cada vez mais para trás, acabarás por chegar ao tronco único.
— Mas, se continuares, chegarás à multiplicidade das raízes. E, se te afastares, verás que a árvore é apenas uma entre milhares de outras que existem na floresta. O problema, Beneditx, é que afirmas que as coisas que existem no mundo à nossa volta têm de ter uma explicação e apresentas Deus como a explicação. Mas, para mim, o mundo que está à nossa volta não me suscita quaisquer dúvidas nem necessita de qualquer explicação. Para mim, tudo aquilo que existe aos nossos olhos, ao nosso tacto, ao nosso paladar e ao nosso olfacto, é possível, e o que é possível não é impossível. Daí que eu não veja a necessidade de Deus.
— Mas hás-de ver — disse Beneditx, num assomo de paixão. Apresentar-te-ei as provas do grau e do desígnio. Hás-de ver!
O conhecimento dos anjos de JILL PATON WALSH
Neste belíssimo romance, a autora transporta-nos até uma ilha mediterrânica em plena Idade Média, onde a lenda do menino-selvagem é recuperada – uma criança que viveu desde sempre entre os lobos é encontrada por pastores numa montanha gelada – e serve de contraponto à história de um náufrago, Palinor, cujos conhecimentos do mundo, engenho e lógica excedem os de todos aqueles que põem em causa as suas crenças. À medida que a narrativa dramática se vai desenrolando até à sua conclusão implacável, torna-se, porém, evidente para o leitor que uma destas duas vidas terá de ser sacrificada.
Numa linguagem simples e profundamente bela, “O conhecimento dos anjos” é uma metáfora que ultrapassa o tempo em que ocorre a história, que conta e explora os conflitos entre a tolerância e a moral instituída, entre o amor e a crueldade.
Numa linguagem simples e profundamente bela, “O conhecimento dos anjos” é uma metáfora que ultrapassa o tempo em que ocorre a história, que conta e explora os conflitos entre a tolerância e a moral instituída, entre o amor e a crueldade.
Passamos pelas coisas sem as ver
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, agosto 20, 2008
Assim como assim
Tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. Não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós: algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. Princípios, claro. Regras. O resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. E estive sozinho nos momentos mais difíceis da vida, que sofri na carne como um cão: aquilo que, destilado, aparece nos livros, que são o itinerário de uma aprendizagem e de uma dor, a certeza da vida redimir a morte, da necessidade da alegria, de uma paz intransigente conquistada a pulso. A humilde capacidade de admirar as pessoas, respeitá-las, que tanto tempo levei a conseguir. Olhar nos olhos o que um ano destes não serei. Custa-me a ideia de não escrever, um dia. Do mundo continuar sem mim. De perder corpos, calor: o que ganharei em troca? O meu pai foi-se embora há quatro anos: percebo hoje que existia entre eu e a morte, a defender-me sem saber que me defendia e que a partir de então, quando ela tocar à campaínha, é a minha vez de abrir a porta: não quero chegar à maçaneta a tropeçar, quero mostrar-lhe a casa limpa e pronta. Dizer a quem se achar ao meu lado
– Eu já venho
e descer as escadas. Não se incomodem, não se levantem: sou capaz de descer as escadas sem ajuda até vários palmos abaixo da terra. Espero que haja sol nesse dia, um arrepio alegre nas árvores. Não se incomodem que eu já venho. Sentir-me-ão nos objectos, deixarão de sentir-me a pouco e pouco à medida que a saudade se atenua. Continuarei aqui através dos meus livros, na altura em que ninguém meu conhecido sobrar. Ficam retratos, claro, reflexos pálidos do que fui. Depois nem sequer os retratos, um nome apenas. Páginas e páginas que não imaginarão o que me custaram, a luta permanente, a dificuldade em limpá-las. Tem de passar-se as passas do Algarve para dar prazer ao leitor. Espero que Deus me conceda acabar três ou quatro textos, deixá-los prontos para que outros construam por cima, como eu construí por cima dos que me precederam. Se alguma dignidade de homem tenho deu-me a Arte. Hipócrates: a Arte é longa, a Vida breve, a Experiência enganadora e o Juízo difícil. O meu pai tinha isto num rectângulo de papel, no seu gabinete do hospital. A Arte é longa, a Vida breve. Se te sentes desfalecer pega na tua própria mão para ganhares coragem. Talvez dê resultado. Tentaste. É noite agora, corri as cortinas, estou sozinho. Faltam-me os meus amigos, falta-me o mar. Estantes cheias de lombadas, esta mesa. A esferográfica que lá vai andando aos tropeções. Os cigarros são a água com que empurro a comida das frases. Gostava de deixar de fumar, uma escravidão estúpida. Eis-me sozinho rodeado de vozes. Ninguém me pode ajudar a fazer isto. Se cair do trapézio a responsabilidade é minha e o aleijar das costas também. Conseguirei agarrar o próximo, falharei? Não me interessa narrar histórias, contento-me em abrir o coração. A minha mãe fez noventa anos em dezembro: limita-se a esperar numa cadeira. No que me respeita não vou esperar numa cadeira: a mão desenhará letras até ao fim. Esta não é uma crónica melancólica: é a obstinação do ofício que pratico desde que me conheço, afastando sempre o que o estorvava. Pagam-me para fazer o que faria de qualquer maneira e portanto sou uma criatura feliz. Na altura em que a morte, de que falei há bocado, chegar, já a venci. Amanhã na batalha pensa em mim: título do meu amigo Javier Marías. Hoje na batalha penso em vocês, não deixo de pensar em vocês. Somos tantos, cada um de nós é tantos.
Há horas cortei o cabelo: à minha frente, no espelho, um sujeito a quem cortavam o cabelo e me olhava. Parecíamos desconfiar um do outro e tive vontade de pedir-lhe desculpa por o tratar tão mal, comendo não importa o quê, dormindo pouco, não lhe dando atenção. São Francisco de Assis: confesso que tratei muito mal o meu pobre irmão corpo. Haja alguma coisa em que São Francisco e eu sejamos colegas. Lá estava o António com as madeixas a tombarem na toalha, aquela boca, aqueles olhos. Rugas: serão do espelho ou minhas? Que idade tenho? Sei lá: muda constantemente, para trás, para o lado, às vezes foge-me, outras regressa: ao cortar o cabelo estava ali, viva. E é impossível ser aquilo, é impossível ser isto. Nada em comum entre nós e o cabelo a descer para a toalha, sem cessar. Veio-me à ideia o barbeiro do meu avô, o senhor Melo, a rua 1.º de Dezembro, manucuras que eu achava lindas, tão perfumadas, tão gordas, a arrulharem: devo-lhes a minha primeira erecção consciente, pensei em pedir-lhes para casarem comigo, as duas, de uma vez. Não pedi. Quer dizer pedi sem as palavras e não me responderam, ocupadas a fazerem festinhas nos dedos de uns cavalheiros quaisquer, de joelho activamente
(gosto do activamente)
encostado à perna deles. De modo que ao conhecer o desejo conheci o ciúme. E a indiferença já agora, porque não me ligaram nada. Que teria eu de mal para além de oito anos? E oito anos é um defeito assim tão grande? Ninguém sabia, claro, que eu era o escritor mais importante do mundo e maçava-me elas não o reconhecerem com um relance apenas. Um génio ao alcance do braço e as manucuras zuca zuca na fazenda dos cavalheiros. O senhor Melo, esse, entendeu-me o olhar
– O avôzinho nunca deixa que lhe toquem
e eu a achar de imediato que o meu avô era parvo. Mal entrei em casa fui à brilhantina do meu pai
(um boião pegajoso)
e penteei-me para trás. Só me faltava o smoking e uma actriz ao lado para ser Gary Cooper
por uma pena. Gary Cooper, na minha forma de ver, não andava longe de Camões, de maneira que me espantou, ao jantar, mandarem-me comer a sopa mais depressa. Não imaginava
(não imagino)
a mãe de Gary Cooper e Camões (uma para ambos chega)
a mandá-los comer a sopa mais depressa. Recordo-me de afirmar
– Sou melhor que Camões e Gary Cooper juntos e multiplicados por dez
e ainda hoje estou para compreender o que significava o silêncio que se seguiu.
– Eu já venho
e descer as escadas. Não se incomodem, não se levantem: sou capaz de descer as escadas sem ajuda até vários palmos abaixo da terra. Espero que haja sol nesse dia, um arrepio alegre nas árvores. Não se incomodem que eu já venho. Sentir-me-ão nos objectos, deixarão de sentir-me a pouco e pouco à medida que a saudade se atenua. Continuarei aqui através dos meus livros, na altura em que ninguém meu conhecido sobrar. Ficam retratos, claro, reflexos pálidos do que fui. Depois nem sequer os retratos, um nome apenas. Páginas e páginas que não imaginarão o que me custaram, a luta permanente, a dificuldade em limpá-las. Tem de passar-se as passas do Algarve para dar prazer ao leitor. Espero que Deus me conceda acabar três ou quatro textos, deixá-los prontos para que outros construam por cima, como eu construí por cima dos que me precederam. Se alguma dignidade de homem tenho deu-me a Arte. Hipócrates: a Arte é longa, a Vida breve, a Experiência enganadora e o Juízo difícil. O meu pai tinha isto num rectângulo de papel, no seu gabinete do hospital. A Arte é longa, a Vida breve. Se te sentes desfalecer pega na tua própria mão para ganhares coragem. Talvez dê resultado. Tentaste. É noite agora, corri as cortinas, estou sozinho. Faltam-me os meus amigos, falta-me o mar. Estantes cheias de lombadas, esta mesa. A esferográfica que lá vai andando aos tropeções. Os cigarros são a água com que empurro a comida das frases. Gostava de deixar de fumar, uma escravidão estúpida. Eis-me sozinho rodeado de vozes. Ninguém me pode ajudar a fazer isto. Se cair do trapézio a responsabilidade é minha e o aleijar das costas também. Conseguirei agarrar o próximo, falharei? Não me interessa narrar histórias, contento-me em abrir o coração. A minha mãe fez noventa anos em dezembro: limita-se a esperar numa cadeira. No que me respeita não vou esperar numa cadeira: a mão desenhará letras até ao fim. Esta não é uma crónica melancólica: é a obstinação do ofício que pratico desde que me conheço, afastando sempre o que o estorvava. Pagam-me para fazer o que faria de qualquer maneira e portanto sou uma criatura feliz. Na altura em que a morte, de que falei há bocado, chegar, já a venci. Amanhã na batalha pensa em mim: título do meu amigo Javier Marías. Hoje na batalha penso em vocês, não deixo de pensar em vocês. Somos tantos, cada um de nós é tantos.
Há horas cortei o cabelo: à minha frente, no espelho, um sujeito a quem cortavam o cabelo e me olhava. Parecíamos desconfiar um do outro e tive vontade de pedir-lhe desculpa por o tratar tão mal, comendo não importa o quê, dormindo pouco, não lhe dando atenção. São Francisco de Assis: confesso que tratei muito mal o meu pobre irmão corpo. Haja alguma coisa em que São Francisco e eu sejamos colegas. Lá estava o António com as madeixas a tombarem na toalha, aquela boca, aqueles olhos. Rugas: serão do espelho ou minhas? Que idade tenho? Sei lá: muda constantemente, para trás, para o lado, às vezes foge-me, outras regressa: ao cortar o cabelo estava ali, viva. E é impossível ser aquilo, é impossível ser isto. Nada em comum entre nós e o cabelo a descer para a toalha, sem cessar. Veio-me à ideia o barbeiro do meu avô, o senhor Melo, a rua 1.º de Dezembro, manucuras que eu achava lindas, tão perfumadas, tão gordas, a arrulharem: devo-lhes a minha primeira erecção consciente, pensei em pedir-lhes para casarem comigo, as duas, de uma vez. Não pedi. Quer dizer pedi sem as palavras e não me responderam, ocupadas a fazerem festinhas nos dedos de uns cavalheiros quaisquer, de joelho activamente
(gosto do activamente)
encostado à perna deles. De modo que ao conhecer o desejo conheci o ciúme. E a indiferença já agora, porque não me ligaram nada. Que teria eu de mal para além de oito anos? E oito anos é um defeito assim tão grande? Ninguém sabia, claro, que eu era o escritor mais importante do mundo e maçava-me elas não o reconhecerem com um relance apenas. Um génio ao alcance do braço e as manucuras zuca zuca na fazenda dos cavalheiros. O senhor Melo, esse, entendeu-me o olhar
– O avôzinho nunca deixa que lhe toquem
e eu a achar de imediato que o meu avô era parvo. Mal entrei em casa fui à brilhantina do meu pai
(um boião pegajoso)
e penteei-me para trás. Só me faltava o smoking e uma actriz ao lado para ser Gary Cooper
por uma pena. Gary Cooper, na minha forma de ver, não andava longe de Camões, de maneira que me espantou, ao jantar, mandarem-me comer a sopa mais depressa. Não imaginava
(não imagino)
a mãe de Gary Cooper e Camões (uma para ambos chega)
a mandá-los comer a sopa mais depressa. Recordo-me de afirmar
– Sou melhor que Camões e Gary Cooper juntos e multiplicados por dez
e ainda hoje estou para compreender o que significava o silêncio que se seguiu.
A criança que fui chora na estrada
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
Fernando Pessoa
22-9-1933
among the ten thousand things
everything you want
terça-feira, agosto 19, 2008
Foto:G.Ludovice, Lisboa 2007
"Um homem que, por fim, tenha encontrado algo para fazer não necessita de um fato novo para o realizar. O velho fato servirá, todo poeirento e guardado no sótão por um período indeterminado de tempo. Os sapatos velhos servirão a um herói mais tempo do que serviram ao seu criado ( se é que algum herói alguma vez teve criados).
(...) Somente aqueles que frequentam soirées e reuniões oficiais devem ter novos casacos, para mudar tantas vezes como muda o homem que os veste.
(...) Eis o que vos digo: acautelai-vos de todos os negócios que exigem roupas novas e não um novo portador de roupas.
(...) Talvez nunca devêssemos ter novos trajes, por mais esfarrapados e sujos que estivessem os velhos, até termos conduzido, empreendido ou zarpado, de alguma forma, sentindo-nos homens novos com velhas aparências, em que preservá-las seria como guardar vinho novo em garrafas velhas. A nossa época da muda, como a das aves, deve ser uma crise existencial.
(...) É conveniente que um homem se vista de forma tão simples que possa colocar as mãos sobre ele mesmo na escuridão, e que viva, em todos os aspectos, tão compacta e convenientemente preparado, que, se um inimigo tomar a cidade, ele possa, como o velho filósofo, sair porta fora de mãos vazias sem ansiedade(...)."
Onde vivi e para que vivi, Thoreau, Ed. Quasi
Estrela Azullaranja
Não escolhemos a família!?... (há quem pense que sim!!!)
A família é-nos dada, no dia em que vimos ao mundo, como um presente surpresa.
Nascemos já com um número imenso de antepassados e de presentes…
Pais presentes, avós, irmãos, tios, primos, sobrinhos presentes (passados, ou futuros?).
À medida que crescemos, também a família cresce connosco…
Um primo que casa, uma sobrinha que nasce,
um namorado que a avó viúva traz para casa.
A família pode ter muito a ver connosco, ou muito pouco.
Podemos ver-nos muito, ou quase nada (só em festas de Natal e aniversários!).
Podemos ser unidos ou ausentes.
A família é, está, existe,
Quer queiramos, quer não…
Quer gostemos dela ou não…
E os amigos?
Os amigos também estão, são, existem,
Se quisermos que assim seja…
Se gostarmos deles!
Os amigos são aquela família que não nos é dada de presente,
Mas que escolhemos, conquistamos, cuidamos, cultivamos,
E que não nasce connosco.
Claro que há familiares que podem ser, também, amigos…
E amigos que se tornam familiares.
Tenho uma amiga (do coração) que, se fosse uma estrela,
teria um brilho laranja ofuscante nas extremidades
e uma luz azul celestial densa, no centro, no coração da estrela.
As suas emoções são azuis, sensíveis, generosas, solidárias.
A sua força é laranja, raiante de energia, brilhante de determinação.
Entrou na minha vida como família.
Conheci-a numa fase difícil da Vida (para ambas e para a família).
Surgiu numa altura de angústia, de dor, de perda.
Apareceu como que enviada por um anjo,
estrela azullaranja iluminando o caminho,
escrevendo mails, do outro lado do mundo,
palavras de conforto, carregadas de vida, de emoção e de esperança.
Mesmo sem conhecê-la pessoalmente,
comecei a gostar dela profundamente,
pelas verdades irrefutáveis que mencionava nas suas cartas,
pela pureza de alma, pela sinceridade de emoções expressa nas palavras.
Então, além de primas (que na realidade não somos),
ficámos amigas. Grandes amigas. Amigas eternas.
E como os amigos são aquela família que escolhemos
e não nos é dada de presente, será sempre, sempre, minha família!
Beijinhos para ti estrelinha azullaranja.
Dinamene
A família é-nos dada, no dia em que vimos ao mundo, como um presente surpresa.
Nascemos já com um número imenso de antepassados e de presentes…
Pais presentes, avós, irmãos, tios, primos, sobrinhos presentes (passados, ou futuros?).
À medida que crescemos, também a família cresce connosco…
Um primo que casa, uma sobrinha que nasce,
um namorado que a avó viúva traz para casa.
A família pode ter muito a ver connosco, ou muito pouco.
Podemos ver-nos muito, ou quase nada (só em festas de Natal e aniversários!).
Podemos ser unidos ou ausentes.
A família é, está, existe,
Quer queiramos, quer não…
Quer gostemos dela ou não…
E os amigos?
Os amigos também estão, são, existem,
Se quisermos que assim seja…
Se gostarmos deles!
Os amigos são aquela família que não nos é dada de presente,
Mas que escolhemos, conquistamos, cuidamos, cultivamos,
E que não nasce connosco.
Claro que há familiares que podem ser, também, amigos…
E amigos que se tornam familiares.
Tenho uma amiga (do coração) que, se fosse uma estrela,
teria um brilho laranja ofuscante nas extremidades
e uma luz azul celestial densa, no centro, no coração da estrela.
As suas emoções são azuis, sensíveis, generosas, solidárias.
A sua força é laranja, raiante de energia, brilhante de determinação.
Entrou na minha vida como família.
Conheci-a numa fase difícil da Vida (para ambas e para a família).
Surgiu numa altura de angústia, de dor, de perda.
Apareceu como que enviada por um anjo,
estrela azullaranja iluminando o caminho,
escrevendo mails, do outro lado do mundo,
palavras de conforto, carregadas de vida, de emoção e de esperança.
Mesmo sem conhecê-la pessoalmente,
comecei a gostar dela profundamente,
pelas verdades irrefutáveis que mencionava nas suas cartas,
pela pureza de alma, pela sinceridade de emoções expressa nas palavras.
Então, além de primas (que na realidade não somos),
ficámos amigas. Grandes amigas. Amigas eternas.
E como os amigos são aquela família que escolhemos
e não nos é dada de presente, será sempre, sempre, minha família!
Beijinhos para ti estrelinha azullaranja.
Dinamene
DE TARDE
Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde
Um estado de alma
Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma.Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De resto para que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim, cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão da erva que cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado de alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora.
Fernando Pessoa
Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil
Foto:G.Ludovice, rio Thames, 2008
Enviei-me para longe.
Porque o mais além de que se não sabe o cheiro ou as modelações das formas, é um berço para a alma, seja ela nascente e por isso também já saudosa ou morrente e por tal desperta até se raiar de nadas.
Porque o mais além de que se não sabe o cheiro ou as modelações das formas, é um berço para a alma, seja ela nascente e por isso também já saudosa ou morrente e por tal desperta até se raiar de nadas.
EM XEQUE
"Estes contos sinalizam o lugar e o momento em que se abre, no quotidiano das personagens, uma brecha pela qual penetram os demónios familiares – o medo, a hipocrisia, a doença, a servidão, a traição – colocando-as em xeque. Uma coisa é certa: nada pode voltar a ser o mesmo."
Adorei ler estes contos! São diferentes, uns mais interessantes do que outros, mas todos com um final completamente inesperado. Foi disso que mais gostei, para além de nos trazer temas tão profundos e actuais. Longe de mim desvendar o mistério que cada um encerra, porque aconselho a ler logo que possam. Também posso emprestar, claro. Neste momento o livrinho está com a minha mãe, que já o deve ter lido. Se ela não o emprestou ( como ela gosta tanto de fazer), posso trazê-los brevemente.
segunda-feira, agosto 18, 2008
Do meu ar triste!
Não sei o que transpareço, o que os outros vêem no meu semblante! Francamente, ignoro. Não é bem ignorar, é tentar perceber, interiorizar por que razão às vezes me perguntam:"Está(s) triste?", e eu surpreendida, respondo:"Não! Porquê?", ao que voltam a constatar: "Tem(ns) um ar triste!"
Deve ser problema de nascença, ou então terei caído, vincado o rosto, terei visto em pequenina, algo terrível, que me assustou para todo o sempre e acentuou este meu ar amargurado, que dizem eu possuir. Eu sei lá!
O mais intrigante é que quando alguém peremptoriamente realiza tal afirmação, eu não estou triste, talvez esteja pensativa.
Tenho pavor em imaginar a minha cara, quando realmente estou triste. Deve ser a de alguém amarguradíssimo, quase a sucumbir ao pranto.
Esta situação passou-se comigo hoje, e não foi hoje inaugurada! Eu bem digo à(s) pessoa(s) que estou bem, mas nota-se perfeitamente que não acreditam nas minhas palavras. Devem pensar:"Coitada! Tão infeliz que ela é!"
Fico irritada, fico furiosa!
Já pensei em várias soluções: não sair de casa, viver em pleno Carnaval ou então vestir uma burka (sem melindrar a dita cultura!)
Enfim!!!
maria eduarda
A FENDA
"A Fenda" de Doris Lessing é uma história diferente, estranha, que não me agarrou logo no início, mas que acabou por despertar a minha curiosidade, sobretudo pelo tema ser tão original. A criatividade da escritora é fantástica, no verdadeiro sentido do termo. Fala-nos do desenvolvimento da espécie humana, tendo como origem a mulher. O narrador é um senador romano, historiador, que tem consigo documentos baseados em testemunhos orais. Conta-nos a história da criação da humanidade, levando-nos a imaginar uma sociedade bem diferente desta que conhecemos. Uma sociedade de mulheres, livres. Livres de tudo, até dos homens. Procriam sem eles, controlam os nascimentos através das fases da lua e têm apenas crianças do sexo feminino. O nascimento de um bebé do sexo masculino vem abalar a harmonia da comunidade. Doris Lessing afirma que esta obra foi inspirada por um artigo científico, onde se concluía que os primeiros seres humanos teriam sido mulheres. A escritora analisa como homens e mulheres, aparentemente semelhantes, ainda que diferentes, lidam lado a lado nas sociedades. É, realmente, uma obra misteriosa, que nos fala do mistério da existência. Se aconselho?! Depende do interesse de cada um. Achei curioso, interessante e é sempre bom ler, inclusive, sobretudo, livros tão surpreendentes como este.
domingo, agosto 17, 2008
sábado, agosto 16, 2008
Lágrimas
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal na sua realidade directa; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não "tenho vontade de chorar", que é como diria um adulto, isto é um estúpido, senão isto,"Tenho vontade de lágrimas". E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida.
"Tenho vontade de lágrimas"! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
Fernando Pessoa
quinta-feira, agosto 14, 2008
A espiral
A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa.Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto ascendente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificudade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.
Fernando Pessoa
27-7-1930
quarta-feira, agosto 13, 2008
O VENDEDOR DE PASSADOS
Félix Ventura escolheu um estranho ofício: vende passados falsos. Os seus clientes, prósperos empresários, políticos, generais, enfim, a emergente burguesia angolana, têm o futuro assegurado. Falta-lhes, porém, um bom passado. Félix fabrica-lhes uma genealogia de luxo, memórias felizes, consegue-lhes os retratos dos ancestrais ilustres. A vida corre-lhe bem. Uma noite entra-lhe em casa, em Luanda, um misterioso estrangeiro à procura de uma identidade angolana. E então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer. Sátira feroz, mas divertida e bem-humorada, à actual sociedade angolana, “O Vendedor de Passados” é também (ou principalmente) uma reflexão sobre a construção da memória e os seus equívocos.
terça-feira, agosto 12, 2008
"Vai aonde te leva o coração"
"Quando te sentires perdida, confusa, pensa nas árvores, lembra-te da forma como crescem. Lembra-te de que uma árvore com muita ramagem e poucas raízes é derrubada à primeira rajada de vento, e de que a linfa custa a correr numa árvore com muitas raízes e pouca ramagem. As raízes e os ramos devem crescer de igual modo, deves estar nas coisas e estar sobre as coisas, só assim poderás dar sombra e abrigo, só assim, na estação apropriada, poderás cobrir-te de flores e de frutos.E quando à tua frente se abrirem muitas estradas e não souberes a que hás-de escolher, não te metas por uma ao acaso, senta-te e espera. Respira com a mesma profundidade confiante com que respiraste no dia em que vieste ao mundo, e sem deixares que nada te distraia, espera e volta a esperar. Fica quieta, em silêncio, e ouve o teu coração.Quando ele te falar, levanta-te, e vai para onde ele te levar.
Penso que parte deste excerto já foi um post da Solange, mas não é demais a repetição. A mensagem é muito forte e ajuda-nos bastante a reflectir.
Solange, li o livro há pouco tempo, num ápice! Gostei muito e ao mesmo tempo entristeceu-me a postura das personagens: foi preciso errarem, não ouvirem o coração, para depois chegarem à conclusão de que é preciso dizer a quem amamos, o que sentimos. Mas afinal trata-se da realidade, muitas vezes erramos, mas se estivermos atentos, não voltaremos a repetir o mesmo erro!
Aconselho a leitura!
Fui visitar o blogue “Rascunhos Criativos”. Aconselho, COM TEMPO, uma visita. Para reflexão. Cada palavra escrita pela Élia tem a FORÇA que precisamos ter, todos os dias, quer em férias, quer quando trabalhamos. E se pudéssemos usufruir de um workshop da autora, psicóloga de profissão, seria fantástico. E se experimentassem?!
A propósito, lembrei-me de colocar, aqui, a base da filosofia da Louise Hay:
- A auto-aprovação e a auto-aceitação estão na base das mudanças positivas: gostar de nós é um compromisso para a vida!
- Os nossos pensamentos criam a nossa realidade - o que acreditamos sobre nós e a vida, torna-se a nossa realidade.
- O momento presente é o momento de poder - é aqui e agora que podemos começar a mudar no sentido de maior consciência e felicidade pessoais.
- Podemos (e devemos) libertar-nos do passado, perdoando o que for necessário - o perdão abre caminho ao Amor.
- O Amor é a força mais curadora do mundo.
segunda-feira, agosto 11, 2008
Presídio
Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira, Poemas de Amor
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão-Ferreira, Poemas de Amor
sexta-feira, agosto 08, 2008
A minha boneca
Um ano, de Verão abrasador,
Recebi uma boneca linda.
Afaguei-a com muito amor,
A boneca que tenho ainda.
Teimosa, chuchava um dedo,
É a minha boneca preferida.
Faz-me companhia, desde cedo,
E é aquela amiga querida.
É das demais diferente,
Conversa, de noite e de dia,
E até tem nome de gente,
Chama-se ela Sofia.
maria eduarda
quinta-feira, agosto 07, 2008
PARA REFLECTIR!
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares... É o tempo da travessia e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos."
Fernando Pessoa
Ser poeta
Enquanto fui poeta, afrontei-me que mo chamassem; hoje tenho pena e saudade de o não poder já ser. Era uma viciosa vergonha a que eu tinha, porque não há melhores nem mais nobres almas que as dos poetas: agora o conheço bem, desde que o não sou, e que sinto as picadas das más paixões e dos acres sentimentos da baixeza humana avisarem-me que está comigo a idade da prosa [...]
Dieta, regularidade e moderação prolongam a juventude do corpo; mas quando a alma chegou a enrugar-se, não há higiene que a desfranza. A minha está velha; e a todos os achaques da velhice, junta essa fatal e matadora saudade do passado. Quanto dera eu por ver e sentir como via e sentia quando pensava pouco e sentia muito! Quem me dera ser o louco, o doido, o poeta que eu tinha vergonha de ser! E de que me serve a reflexão, a experiência, a razão como lhe chamam, se não é para ver de outro modo as ilusões da vida, para as ver do lado feio, torpe, baixo e vulgar, quando eu as via dantes esmaltadas de todas as cores do Íris, belas de toda a poesia que estava na minha alma, grandes de todas as virtudes que eram no meu coração! [...] este título de Flores sem Fruto[...] Nem todas são de Primavera estas flores: há de várias estações: fruto é que nenhuma deu. Deixariam de ser flores poéticas se o dessem[...]
Almeida Garrett
Um excerto do diário do André (parte II)
03-03-2005
00h50
Decidi passar a escrever o diário com a mão esquerda. Vai-me demorar muito mais tempo, mas já há muito que não tinha tarefas esquerdinas! Hoje ainda cheguei mais tarde ao "escritório" do que ontem. Nada de mais. Uns quantos minutos. Estou a gostar imenso do facto de estar realmente empenhado nestas apresentações sobre a U.E. Provavelmente, não vou ter tempo para preparar tudo como quero, mas depois no próximo Euroweek aperfeiçoo tudo. Já tenho a apresentação do Orçamento quase pronta! Já fiz os acetatos e agora só falta complementar com alguma informação, de modo a saber mais alguma coisa daquilo que vai estar apresentado em quadros ou esquemas. Depois do "trabalho", e depois do jantar em casa, fui ter com a Stella e com a Armelle à casa da grega. Ainda comi lá outra vez! Mas nada de grave! Um bocadinho de sopa, uma saladita e no fim uma salada de frutas. Claro, que enquanto jogávamos o "Expresso" fizemo-nos acompanhar de umas bolachitas e de uns sumitos. Curioso. Não sei se foi o facto de ter cá estado o namorado, mas a Armelle parece estar mais acessível, mais dada, enfim mais social. Contudo, de vez em quando ainda tem uns vipes "armellianos". É uma daquelas mulheres que, até agora, não me atrai nada fisicamente. É sempre bom ter de caminhar durante 15/20 minutos para ir a qualquer sítio ("escritório", casa da Stella, se bem que para as aulas seja menos, mas também apanho aquelas cento e tal escadas!). É da maneira que se faz logo a digestão e etc! A ver se descubro o tal sítio onde se pode treinar (o quê e com quê é que continuam por desvendar!), porque tenho que queimar alguns bocadinhos que já começam a estar a mais. As raparigas é que têm uma tendência para engordar impressionante. Parece que cada dia que passa as vejo mais gordas! E depois passam o tempo a queixarem-se, mas quando chega a hora (ou mesmo quando não chega!) é vê-las açambarcar o que estiver no prato (ou nas tabletes!). Claro, que todo esse ritual acompanhado sempre pela constatação/descargo de consciência:"Ai que neste país come-se tanto! Desde que cheguei cá não faço outra coisa senão comer!" Pois, pois. Cá se comem, cá se pesam! (Não teve muita piada, eu sei, mas a tentativa é que conta) :-)
André Soares
quarta-feira, agosto 06, 2008
Poema ao filho
Quisera eu, embalar-te,
esperar que adormecesses,
e olhar-te sereno, nos meus braços.
Quisera eu, ouvir-te dizer Mãe,
quando te sentias assustado,
e me estendias a mão.
Quisera eu, apertar-te no colo,
acalmar-te e cobrir-te de beijos,
para então sossegares.
Quisera eu, fazer-te caretas,
e ouvir as tuas risadas,
esperar que adormecesses,
e olhar-te sereno, nos meus braços.
Quisera eu, ouvir-te dizer Mãe,
quando te sentias assustado,
e me estendias a mão.
Quisera eu, apertar-te no colo,
acalmar-te e cobrir-te de beijos,
para então sossegares.
Quisera eu, fazer-te caretas,
e ouvir as tuas risadas,
de tanta alegria sentida.
Mas não! Tu cresceste!
E eu, às vezes, não vejo!
Tu traças o teu caminho, diferente,
e eu, às vezes, inquieto-me!
Tu estás diferente, do menino,
e eu, tento reparar!
Às vezes, é mais difícil aceitar,
mas preciso dar-te espaço.
Mas sabes filho, nos teus sonhos,
Mas não! Tu cresceste!
E eu, às vezes, não vejo!
Tu traças o teu caminho, diferente,
e eu, às vezes, inquieto-me!
Tu estás diferente, do menino,
e eu, tento reparar!
Às vezes, é mais difícil aceitar,
mas preciso dar-te espaço.
Mas sabes filho, nos teus sonhos,
hoje e sempre,
Estou lá eu,
Estou lá eu,
o embalo e o aconchego!
maria eduarda
Poema à mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa:
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
"No começo do Génesis está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e outros animais. É claro que Génesis foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
Esse direito - o de matar um veado ou uma vaca – parece-nos natural, porque nós estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas, para que toda a evidência do Génesis fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano - eventualmente grelhado no espeto por um visitante da Via Láctea - talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar no prato. Pediria (tarde demais), desculpas à vaca."
Esse direito - o de matar um veado ou uma vaca – parece-nos natural, porque nós estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas, para que toda a evidência do Génesis fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano - eventualmente grelhado no espeto por um visitante da Via Láctea - talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar no prato. Pediria (tarde demais), desculpas à vaca."
Milan Kundera A Insustentável Leveza do Ser
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