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quinta-feira, maio 01, 2008

Memorial do Convento - uma leitura


A acção principal do romance Memorial do Convento é a construção do Convento de Mafra. D João V promete mandar construir o convento, se a sua esposa engravidar. A História reaparece através da ficção, aliás, os dados históricos entrelaçam-se constantemente com episódios ficcionais.

O narrador coloca-se do lado do trabalhador, que dia e noite edifica o convento: "por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do Convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão de anacrónica voz" (p.257).

São também relatados os autos-de-fé praticados pela Inquisição e, a par da acção principal, viajamos para um mundo doce, mágico, que envolve Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, que consegue ver dentro das pessoas. Estas duas personagens são muitas vezes o fio condutor da intriga, conferindo-lhe ternura.

Muito mais haveria a referir mas, tal não vai suceder aqui, porque se trata somente de uma simples abordagem da narrativa.

Boa leitura!

1 comentário:

solange disse...

Maria Eduarda, não resisto!
Que bom recordares “O Memorial do Convento”, que é um dos meus livros preferidos, para não dizer o PREFERIDO!!! Que pena o tempo não nos chegar para ler e reler os melhores! Este livro, como todos os do Saramago, tem uma linguagem especial, um vocabulário riquíssimo e é soberbo nas descrições, nos pormenores, na transmissão de emoções, também de conhecimento, no tal encadeamento da realidade e da ficção.
Para além dos amores de Baltasar e de Blimunda, quero ainda recordar a personagem Padre Bartolomeu Lourenço, que atribuiu a Baltasar e a Blimunda os apelidos de Sete-Sóis e Sete-Luas, respectivamente, (ele “vê às claras” e ela “vê às escuras”) e que é também crucial em toda a trama.
Foi o padre que queria voar e morreu doido. «Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador» (Cap. VI).
O padre que quer voar, Bartolomeu de Gusmão, é também um pilar da acção. Quero lembrar a construção da Passarola, com a ajuda de Baltasar, a partir dos projectos de Bartolomeu de Gusmão, e que voa graças às intenções humanas encerradas, que Blimunda agarrara nos corpos das pessoas, simbolizando a condição humana como condição sagrada. O Padre apresenta, a Baltasar e a Blimunda, o resultado da sua aprendizagem na Holanda. O éter, que fará voar a passarola, vive dentro das pessoas (não é a alma dos mortos, mas a vontade dos vivos). O Padre pede auxílio a Blimunda para ver a vontade dos homens e colhê-la num frasco. Blimunda e Baltasar vão para Lisboa. Ela, para recolher as vontades e ele, para construir a passarola.
"Deus estava fora do homem e não podia estar nele, depois, pelo sacramento passou a estar nele, assim o homem é quase Deus, ou será afinal o próprio Deus, sim, sim, se em mim está Deus, eu sou Deus, sou-o de modo não trino ou quádruplo, mas uno, uno com Deus". É esta prova "sacrílega" que ensandece Bartolomeu, conduzindo-o a tentar queimar a Passarola depois de nela ter fugido, com Baltasar e Blimunda, por temer o Santo Ofício.
Se “O Ensaio sobre a cegueira” já foi adaptado ao cinema, pena é que ninguém se tenha ainda lembrado de fazer deste romance, um filme. Seria, será, digo eu, um filme grandioso, pois toda a descrição da construção do Convento, que representa o sacrifício da força humana, curvada a uma vontade individual, é fantástica. Estamos a ler e estamos a ver! Tanta gente, tanto movimento, tanto sofrimento, tanta força física e, sobretudo, interior. É necessário trabalhar para ganhar o pão e para construir o convento. Em terra sem pedras, há que transportá-las de longe, ultrapassando as próprias forças.
«Seiscentos homens agarrados desesperadamente aos doze calabres que tinham sido fixados na traseira da plataforma, seiscentos homens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-lhes aos poucos a tesura dos músculos, seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser, agora sim, ontem aquilo foi uma brincadeira de rapazes […] »
«Um dos homens que trabalham aos calços é Francisco Marques. Provou já a sua destreza, uma curva má, duas péssimas, três piores que todas, quatro só se fôssemos doidos, e por cada uma delas vinte movimentos, tem consciência de que está a fazer bem o trabalho, por acaso agora nem pensa na mulher, a cada coisa seu tempo, toda a atenção se fixa na roda que vai começar a mover-se, que será preciso travar, não tão cedo que torne inútil o esforço que lá atrás estão fazendo os companheiros, não tão tarde que ganhe o carro velocidade e se escape ao calço. Como agora aconteceu. Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com o antebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim lembrando-se da mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debaixo do carro esmagado […] (Cap. XIX)
A sério que não me queria alongar tanto, mas comentar este livro é irresistível. Aconselho, não resistam, leiam-no e deliciem-se com as palavras de Saramago.