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domingo, maio 25, 2008

Poema em linha recta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos de moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tnho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os piso e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

3 comentários:

didium disse...

Não resisti a publicar este poema sobre a hipocrisia de muitas almas!
Realmente,com o passar dos anos, tenho-me tornado cada vez mais sensível a esta problemática.

solange disse...

E fizeste muito bem!
Que bom trazeres este poema ao nosso blog para nos "obrigares" a reflectir sobre as palavras sábias de Pessoa. Realmente, estamos num mundo "CÃO" e isso dói! Tantos que nos cercam com os seus auto-elogios, as suas "perfeições", o mundo a girar à volta do seu umbigo, esquecendo-se de que há mais gente, gente boa, também inteligente e capaz. Mas não, eles são os maiores!!!

Será que o Vasco vai achar que isto continua muito cor-de-rosa?! Ai, ai!!

Aceitamos as críticas, pois não somos perfeitas e queremos aprender todos os dias mais um pouco.

E obrigada por me teres proporcionado a leitura deste belíssimo poema. Gostei de o reler e de repensar cada palavra!

didium disse...

Vamos aguardar pela opinião do Vasco.
Pessoa escreve poemas "lindos" com um conteúdo sempre actual, que nos leva a reflectir.E eu gosto de reflectir!