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terça-feira, maio 13, 2008

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: " Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é essa:
Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos.
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui?"

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga:"vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

José Régio

3 comentários:

dinamene disse...

Eduarda,

A primeira vez que li este poema foi através de uma grande amiga (uma amiga de sempre) que até vive aí mesmo, no Alentejo! Lembro-me que na altura o fotocopiei e mais tarde passei-o a montes de gente!

O mais incrível é que há dias lembrei-me dele e que gostaria de o reler!

Sou daquelas pessoas que acha que as coincidências não são meros acasos, mas que acontecem por algum motivo…
Obrigada por teres “recuperado” o poema por mim, por me fazeres relê-lo! É tão bonito!

Um beijo para ti e outro para essa minha amiga (com quem há muito não comunico)!

E agora só para ela:

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didium disse...

Dinamene,
Cortei parte do poema,é longo, mas para teu deleite, só para ti, vou escrevê-lo na íntegra.
Bjo

dinamene disse...

Eduarda,

Bom dia!E obrigada!

Li e reli!!!....

Maravilhoso.

Beijos para ti ;)