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terça-feira, dezembro 28, 2010

Especialmente para ti

Menino(a),

Já te dei gramática, interpretação, atenção,

Já viajei contigo através de histórias reais, de sonhos,

Já ouvi algumas queixas ou gritei por seres incorrecto,

Já te ensinei a crescer, acreditei em ti, corrigi-te, repeti,

Já recebi sorrisos teus, ingratidões,

Já me fizeste alguém maior por te conhecer…

O professor dá, dá de si, do coração, dá português ou matemática,

Mostra-te um caminho para seres homem/mulher…

Hoje, olhei o frio do outro lado da janela,

Senti a brisa do Natal a chegar com luzes, fitas coloridas, embrulhos,

Pensei na família, nos amigos, nos alunos…

Pensei que queria dar-te algo especial,

Um presente que levasses contigo pela vida fora,

Que não tivesse tamanho nem material,

Folheei o dicionário, distraída, e escolhi para ti a mais bela palavra,

Que tudo tem nela, a vida, a ilusão, o amor, uma canção.

Escolhi a palavra POEMA.

Há poemas com melodias,

Em palavras que rimam

Sem correrias,

E nos ensinam

A magia dos dias,

Nos sussurram vidas e ilusão….

Há poemas com ritmo!

Força,

Música,

Palavras com pressa,

Que gritam,

Ou marcham,

Ou apenas nos mostram,

Que depois da noite, sempre vem o dia!

Há poemas que se sentem,

Como se fossem borboletas a viver no coração,

Como se tirassem do sol um raio de luz

E nos cobrissem de brilho.

Há poemas que denunciam injustiças,

A Fome e a Guerra,

A Dor e a Violência.

Há, porém outros, que vislumbram a Esperança,

E cantam a Paz, o Amor, o Espírito, o Amanhã,

Há poemas que descrevem tão bem,

que nos fazem ver sítios ou gentes que nunca visitámos….

Escolhi, para ti, a palavra POEMA.

POEMA

Toma, é tua, leva-a com cuidado,

Shhhhhhh……………

Pega nela suavemente,

Observa-a,

Ergue-a nas tuas mãos,

Mima-a, afaga-a,

Agarra-a com força…

sábado, dezembro 25, 2010

anotando...

" (...)Vou anotando nas páginas do meu Milagrário Pessoal os factos extraordinários que me sucedem, ou de que sou involuntária testemunha, dia após dia. É um diário de prodígios. Os milagres acontecem a cada segundo. Os melhores costumam ser discretos. Os grandes são secretos.
Folheei o caderno, fui lendo ao acaso:
« Sexta-feira 28 de Agosto de 2009
Esta noite sonhei com um verso de Sophia. Sonhei que o tinha escrito eu. Fiquei tão feliz que continuei a sorrir mesmo depois de acordar. (...) "

Eduardo Agualusa, Milagrário Pessoal

domingo, dezembro 19, 2010

Do brilho


À espera do brilho

no olhar,

enquanto os olhos

revelam mil cansaços

do percurso

na escuridão.

Um dia, brilharão,

olhos lavados

em límpida água

filtrada na claridade

da luz.


maria eduarda

sexta-feira, novembro 19, 2010

A auto-crítica

Julgo-me pela sensação obrigatória de autocrítica. No início sinto que me compreendo perfeitamente. Então digo: ninguém me conhece melhor do que eu, e fico apaziguado. Depois começo a andar às voltas com a minha própria consciência e, de seguida, sou apanhado num turbilhão de sentimentos contraditórios que me afundam, dividem em dois e me tornam ambíguo. Logo de seguida, lembro-me do provérbio: para podermos julgar alguém, é necessário, antes, colocarmo-nos no seu lugar. Mas quando nos colocamos no lugar do outro, neste caso de nós próprios, sentimos exactamente o mesmo que o outro sente. Tornando, assim, o julgamento impossível. Ora, é precisamente essa incapacidade de me colocar no lugar do outro eu que me impossibilita de autocriticar-me. E volto a apaziguar-me, até recomeçar tudo novamente.


Jaime bulhosa

quarta-feira, novembro 17, 2010

Parabéns...


«Pode a distância separar-te dos teus amigos?

Se queres estar junto de alguém que amas, não te parece que já lá estarás?»


Richard Bach, Não há Longe Nem Distância...




Felizmente, as verdadeiras amizades, não dependem do espaço, nem do tempo...

Aqui fica um forte abraço à Didium,

4 dias depois do teu aniversário, fora de tempo, mas espero que ainda a tempo ;)




"Não há Longe Nem Distância":

sábado, novembro 13, 2010

livros...

No outro dia, comprei (mais) uma Alice no País das Maravilhas. Quando pedi para embrulhar o livro para oferta, a livreira perguntou: é para adulto ou para criança? Devolvi a pergunta com outra: quantos livros permitem esta dúvida, além da Alice? Não imagino alguém perguntar se Os Maias ou o Sexus são um presente para adulto ou para criança. Nem a questionar se O Pêndulo de Foucault ou as Memórias de Adriano deverão ser embrulhados com um papel repleto de ursos, balões ou rebuçados. Ou a colocar a hipótese de A República, O Estrangeiro, A Faca não corta o fogo, A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer ou o Tractatus Logico-Philosophicus serem oferecidos a uma criança. Apesar desta Alice ser para um adulto, apeteceu-me responder que era para uma criança, como se o leitor tivesse as duas idades. E fosse crescendo ou diminuindo, conforme o lado do cogumelo trincado.

Maria João Freitas

terça-feira, outubro 26, 2010

"Não é possível saber se o homem se servirá ainda muito tempo da palavra ou se recuperará pouco a pouco o hábito do uivo."
E.M.Cioran

segunda-feira, outubro 25, 2010


Sê paciente, espera que a palavra amadureça e


se desprenda como um fruto ao passar o vento que o mereça....


Eugénio De Andrade

quinta-feira, outubro 14, 2010

Obstáculos

Este texto que estou a reproduzir aqui não é na realidade um conto, mas antes uma meditação guiada, delineada em forma de sonho destinado a explorar as verdadeiras razões de alguns dos nossos fracassos. Permito-me sugerir-lhe que o leia atentamente, tentando deter-se uns instantes em cada frase, visualizando cada situação.

Vou caminhando por uma vereda.

Deixo que os meus pés me levem.

Os meus olhos pousam-se nas árvores, nos pássaros, nas pedras.

No horizonte recorta-se a silhueta de uma cidade.

Fixo nela o olhar para a distinguir bem.

Sinto que a cidade me atrai.

Sem saber como, dou-me conta de que nesta cidade posso encontrar tudo o que desejo.

Todas as minhas metas, os meus objectivos e os meus logros.

As minhas ambições e os meus sonhos estão nesta cidade.

Aquilo que quero conseguir, aquilo de que necessito, aquilo

que eu mais gostaria de ser, aquilo a que aspiro, aquilo que tento, aquilo pelo que trabalho, aquilo que sempre ambicionei, aquilo que seria o maior dos meus êxitos.

Imagino que tudo está nessa cidade.

Sem duvidar, começo a caminhar até ela.

Pouco depois de começar a andar, a vereda põe-se a subir pela encosta acima.

Canso-me um pouco, mas não importa.

Sigo.

Avisto uma sombra negra, mais adiante, no caminho.

Ao aproximar-me, vejo que uma enorme vala impede a minha passagem.

Receio… Duvido.

Desgosta-me não conseguir alcançar a minha meta facilmente.

De todas as maneiras, decido saltar a vala.

Retrocedo, tomo impulso e salto…

Consigo passá-la.

Recomponho-me e continuo a caminhar.

Uns metros mais adiante, aparece outra vala.

Volto a tomar impulso e também a salto.

Corro até à cidade: o caminho parece desimpedido.

Surpreende-me um abismo que detém o meu caminho.

Detenho-me.

É impossível saltá-lo.

Vejo que num dos lados há tábuas, pregos e ferramentas.

Dou-me conta de que estão ali para construir uma ponte.

Nunca fui habilidoso com as minhas mãos…

… penso em renunciar.

Olho para a meta que desejo… e resisto.

Começo a construir a ponte.

Passam horas, dias, meses.

A ponte está feita.

Emocionado, atravesso-a e ao chegar ao outro lado… descubro o muro.

Um gigantesco muro frio e húmido rodeia a cidade dos meus sonhos…

Sinto-me abatido…

Procuro a maneira de o evitar.

Não há forma.

Tenho de o escalar.

A cidade está tão perto…

Não deixarei que o muro impeça a minha passagem.

Proponho-me trepar.

Descanso uns minutos e tomo ar…

Rapidamente vejo,

de um lado do caminho,

uma criança que olha para mim como se me conhecesse.

Sorri-me com cumplicidade.

Faz-me vir à memória como eu próprio era… quando criança.

Talvez por isso me atrevo a expressar em voz alta a minha queixa.

— Porquê tantos obstáculos entre o meu objectivo e eu?

A criança encolhe os ombros e responde-me.

— Porque mo perguntas a mim?

Os obstáculos não existiam antes de tu chegares…

Foste tu que trouxeste os obstáculos.

Jorge Bucay
"Contos para pensar"

terça-feira, outubro 12, 2010

.. os músculos das palavras?

As palavras pedra ou faca ou maçã, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que tristeza, melancolia ou saudade. Mas é impossível não expressar a subjetividade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade mas não diretamente. Ele não tem que dizer eu estou triste. Ele tem é que encontrar uma imagem que dê idéia de tristeza ou do estado de espírito - seja ele qual for - por meio de palavras concretas e não simplesmente se confessando na base do eu estou triste.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, outubro 07, 2010

Com sentir


Na medida do sentir,
surge a reacção,
às vezes irreflectida,
às vezes grotesca,
às vezes calorosa.
Mas, no sentir imenso,
profundo, pensado,
às vezes o nada
acontece no vazio,
fruto do pensar
que em chão árido,
só sobrevive a flor
que poucos vêem
dentro de nós.

maria eduarda

Prémio Nobel da Literatura 2010

Mario Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa (Reuters)

“Muito comovido e entusiasmado.” Assim se sentiu Vargas Llosa ao saber que era seu o Nobel da Literatura deste ano. Foram as primeiras declarações do escritor, feitas à agência de notícias peruana Andina e citadas pela Lusa.Vargas Llosa está em Manhattan, onde se encontra durante o período em que está a leccionar na Universidade de Princeton, soube o PÚBLICO na Feira do Livro de Frankfurt. "Todos os anos ele sonhava com isto e sempre lhe dissémos que era este o ano", comentava a directora de marketing da Alfaguara (do grupo Santillana), Angeles Aguilera, ao PÚBLICO.

O peruano, de 74 anos, foi distinguido "pela sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens mordazes da resistência, revolta e derrota dos indivíduos", justifica a Academia em comunciado divulgado poucos minutos após o anúncio do Nobel.

As Publicações Dom Quixote, editora da maior parte da obra do escritor em Portugal, congratularam-se pela distinção em comunicado. "Depois de vários anos em que o seu nome foi sucessivamente apontado como vencedor do Nobel", lê-se, "a Academia Sueca decidiu, finalmente, premiar a obra de Vargas Llosa, conhecida e admirada em todo o mundo."

Francisco José Viegas, director editorial da Quetzal, que publicará em 2011 o mais recente romance do escritor, considerou a escolha "absolutamente inesperada", isto, "tendo em conta a tradição dos últimos anos, pelo menos, ou das últimas décadas, do Nobel". Em declarações à Lusa desde Frankfurt, onde acompanha a feira do livro da cidade alemã, Francisco José Viegas definiu Mario Vargas Llosa como um autor que "estuda o poder, estuda as formas de poder, as formas de exercício do poder e também estuda um pouco aquilo que é a memória revolucionária da América Latina”. A atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Mario Vargas Llosa é “um grande incentivo” a todos os que se preocupam com os países onde não há democracia ou a liberdade está ameaçada”, disse o filho do escritor
O escritor peruano Mario Vargas Llosa é o Prémio Nobel da Literatura de 2010, foi anunciado hoje em Estocolmo pela Academia Sueca.

quarta-feira, outubro 06, 2010

Dias cinzentos...


No dia cinzento a rua antiga, já descolorada, parece mais escura sob a sombra das árvores (que se sabe estar lá em dias de sol).


Olho para a padaria antiga, de vidro turvo, e ao fundo vejo a padeira, rugosa e encarquilhada, de cabelos grisalhos e com um avental tão branco que me faz parar, entrar e levar um bolos tão duros como a própria vida ante neblina, tão doces, como a poesia colada ao pormenores dos dias escuros…
Dinamene

quinta-feira, setembro 30, 2010

Reconstruir as ruínas imensas que nos rodeiam

Algumas vezes sabemos, dentro de nós, que devemos fazer qualquer coisa semelhante a plantar uma árvore, mesmo sabendo que nunca comeremos dos seus frutos, nem descansaremos à sua sombra.
Ou descobrimos que devemos aplicar-nos, não tanto ao nosso pequeno problema, mas a reconstruir as ruínas imensas que nos rodeiam.
E nunca, como então, somos tão grandes. E nunca, como então, estamos tão perto de nós mesmos.
Paulo Geraldo

quarta-feira, setembro 22, 2010

Sensatez


Chegada a altura,
parte sem passos,
voa sem asas,
mas relembra
sem dores.
Cresce na mudança,
amacia o silêncio,
e fala baixinho,
pausadamente,
para que as aves
não levem o sonho
em direcção ao Sul.

maria eduarda

domingo, setembro 19, 2010

Diário de barro

O princípio de algo muito desconhecido não é forçosamente favorável à alma humana, oferece demasiada relatividade e é quase sem referências. O que está fora deste corpo é-me tão longínquo neste momento, que parece irreal de tão não familiar.
Para absurdidade, basta estar aqui lançada numa rua desconhecida e comprida, tendo como paisagem frontal um depósito atarracado de água entre uns parcos bancos de jardim desajeitadamente intencional.
...   as primeira impressões são analíticas e mal humoradas, ainda que o espírito sensato busque desesperadamente o equilíbrio harmónico (todos os anos no fim do verão, este desenlace com o habitual acontece-me).
Sentada à mesa, do lado direito existe uma lareira a usar e em frente uma porta imensa cheia de vidros, onde se esbate o meu reflexo também sentado...acho que é o único sinal de vida aqui existente, a simplicidade sombria de uma forasteira. O demais está acalentado por um cheiro de estranheza.
Vejo o dito espaço de cama e as sempre mesinhas aos pares, a soletrarem só os humanos são gares onde se penduram solidões como tiras de corpos e eu, sempre sem adivinhar por onde sair para o dia lá fora aqui dentro, se pela direita num namoro ao desalinho dos cds, se pela esquerda agarrada à ideia de não tropeçar na cauda do candeeiro domesticado pelas riscas do tapete.
“ Barco do Amor, Barco do Amor”... o quarto sem mais passageiros que eu imaginando. A sua acastanhada quadratura atada à memória de um outro outono num outro acastanhado quarto de uma outra rua num outro canto do país com outras amabilidades e outros cantos de boca a jorrarem legendas.
Os passos não retidos no tempo a tornarem-me oleira... não aprecio viver com o passado aconchegado, como um pescoço antigo no seu cachecol de lã, se o não posso tornar presente entre os dedos estremecidos de agora.
É outro alguém que lá está, no reflexo dos vidros em frente – imagino a sua história de vida ... algures.
Peço emprestado - mal me envolvi com o não saber de mim aflita com o pensamento e tudo fora de sítio – um rádio de qualquer tamanho (como quem anseia por uma refeição farta, a três quartos de uma grande viajem) para precisamente, localizar-me nalguma melodia!
Que fazer dos dias a presentear ao vento, ao vento que não varre a soleira da porta que dá para onde ?
“ É por tudo o que em nós corre que se vive e que se morre”, cantarolo uma música...

1 Setembro, Almeirm,  anos noventas
Diário de Barro

sábado, setembro 18, 2010

a propósito de um livro...

" Chegando em casa não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abrio-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim"
Clarice Lispector

quinta-feira, setembro 16, 2010

De livros e editores

A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, a pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e portanto não devia haver cursos de escrita criativa

(um paradoxo nos termos)

mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos, expressão roubada a Shakespeare

(we few, we happy few, we band of brothers)

capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias. Um livro é mais uma orelha que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor quem conversa. O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se reflectem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente activo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, excepto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores ou são ignorantes ou são vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro. Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. A casa alemã onde estou, por exemplo, possui um catálogo honesto, dividido em duas partes, literatura e best-sellers. O argumento temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal. Pasmo com as listas dos tops:

ficção, dizem elas, quando a ficção não existe a não ser nas obras rasteiras. Se me dissessem que escrevia ficção sentia-me insultado: ficção que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro.

Vende menos? Decerto, mas há-de vender sempre. Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparece amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há-de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos. O que me aborrece na Arte são os comerciantes que giram em volta dela, sem lhe tocar, porque tiram o seu alimento do efémero. Faz pouco comecei uma biblioteca na empresa onde estou.

Tolstoi foi o primeiro: ao receber o livro impresso reparei que as últimas três páginas eram propaganda a lixo. Como se pode, no fim de um livro de Tolstoi, fazer aquilo? Desonestidade? Ignorância? Não faço ideia de quem é o responsável mas devia ter sido fuzilado no berço: Tolstoi de mistura com livros de cozinha e ficções. Recomecei a colecção: até agora não repetiram a indignidade. Pergunta:

Como vão os livros da biblioteca?

Resposta:

Pingam

e ainda bem que pingam. Se vendessem às grosas é que eu ficava alarmado. Os bons livros são para pingar eternidade fora: o Mondego começa gota a gota; a água suja basta virar o balde e encharca-nos. A água do balde acaba logo. O Mondego não tem princípio nem fim.

Pingam:

e que maravilha pingarem. À força de pingarem hão-de engrossar irrestivelmente, enquanto os baldes se enferrujam, amolgados, num canto do jardim.

E o que interessa

(volto à Gide)

o amanhã? A gente vive no hoje, pá, o Horácio que se dane. Que se dane a Coroa, o que vale a pena são as coroas e essas já cá cantam. O problema é que, se alguma nova editora aborda a minha agência, não começa por falar em dinheiro: fala nos nomes do catálogo. Todos eles pingam. Mas dão prestígio a uma Casa. Respeito demasiado o meu trabalho para o deixar à venda numa loja dos trezentos.

António Lobo Antunes

domingo, setembro 12, 2010

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Afinal a bala é só o começo do barulho nos olhos, provocado pelo silêncio de quem se está a afastar, depois que deixou a bomba na concha das mãos de alguém.
Não se fica para dar apoio moral a quem se deve matar, nem a uma distância suficiente para ainda fazer-lhe chegar umas palavras de conforto na viajem da agonia, o ideal é desaparecer-se na mata como uma lebre que persegue a vida, deixando apenas o movimento da folhagem ainda a estremecer na visão de quem segura a bomba, ainda naquela confusão amorosa de que só pode ser uma flor, esta que lhe sobeja. As palmas das mãos do coração não são as que estão vazias e que se arrumam na estante dos bolsos, como uma coisa de que se vai precisar mais tarde. Tudo quanto se faz sonhar está lá inteiro, sem outro destino que seja muito diferente do de uma confundida flor.

segunda-feira, setembro 06, 2010

Crónica de muito amor

O João trouxe-me um Santo António pequenino de Pádua: comoveu-me que se tivesse lembrado de mim. Na minha família não se fala de mariquices mas, de vez em quando, há gestos destes, de ternura escondida, como quem não quer a coisa. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar. Deve-se gostar das pessoas sem lhes mostrar? Pelo menos entre nós é assim: não há elogios, não há censuras, raramente há perguntas. Para quê? Há um estar ali que é já tanto. Diz-se sem as palavras e percebe-se que se diz e o que se diz porque o clima, não sei explicar de outra maneira, se torna diferente. Não falamos do que cada um faz: a gente sabe. Do que cada um sente: a gente sabe. Não se fala do sofrimento, não se fala da alegria: a gente conhece. É melhor desta forma. Uma única ocasião o meu pai fez-me uma confidência, sacudiu-a logo com a mão

- Chega de pieguices

e alegrou-me que se penitenciasse por transgredir as regras. Não há efusões, não há gestos e, no entanto, as efusões e os gestos estão lá. Quem souber ver que veja, quem não souber é porque não pertence à tribo. Não há lamentos: porque é que hei-de lamentar a minha sorte, interrogava o grego. Não há censuras, não há críticas, salvo em ocasiões muito, mas mesmo muito, especiais. O Zé Cardoso Pires percebia isto

- Vocês estão muito ligados - disse-me um dia, e mudou logo de paleio.

- Nenhum escritor gosta de falar do que escreve - afirmava ele. E, realmente, nunca falámos um ao outro do que escrevíamos. Quase todos os dias conversávamos mas não se tocava nesse assunto. Quando muito

- Estás a trabalhar?

e acabou-se. Ou

- Não estou a trabalhar

e acabou-se. Uma tarde telefonou-me

- É para te dar os parabéns (porque ganhei um prémio) - desviou logo o assunto e isto é o cúmulo da amizade. Foram os parabéns que, até hoje, mais prazer me deram. Até as nossas dedicatórias mútuas eram secas: Para o António do Zé, Para o Zé do António e um rectângulo à volta, a cercar as palavras, a fechá-las lá dentro. O rectângulo, claro, era o mais importante, e o que estava naqueles quatro riscos, meu Deus. Maior elogio mútuo

- Belo livro

maior crítica mútua: silêncio dentro de um soslaio breve. Não, maior elogio:

- Posso ser amigo de um médico, de um engenheiro, de um pedreiro. Para ser amigo de um artista tenho que admirá-lo.

Passeávamos de braço dado na rua. Com o meu irmão Pedro, por exemplo, darmos o braço é fazermos chichi juntos, no escuro, junto à cascata do jardim dos meus pais, com um comentário sobre o jacto respectivo. Depois sacudirmos os pingos ao mesmo tempo porque a pila não sabe fungar. Então abotoamo-nos e cada um vai para o seu lado, em silêncio. Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade, a olharmos para baixo, cheios de duplos queixos. Tanto che che che nesta frase. Fazer chichi na rua é um dos meus prazeres, devo ter sido cachorro noutra encarnação. Detesto urinóis, retretes: haverá alguma coisa que se compare à exaltação de mijar contra uma parede? Às vezes, a seguir ao jantar, digo ao Pedro

- Já mijaste?

sabendo que ele estava à minha espera para essa celebração da cumplicidade. Nem que sejam três gotas faz-se um esforço. Vemos as árvores, vemos o muro, não nos vemos um ao outro mas estamos ali. Nem quero pensar na ideia de fazer chichi sozinho. No fim pergunta-se

- Como é que estás?

sabendo que o parceiro se cala. Depois cada um no seu carro, sem mais palavras. Um atrás do outro e, a certa altura, separamo-nos, com um sentimentozito de despedida que custa. Quer dizer não custa assim tanto, custa um bocadinho e passa. Eu vou fazer redacções, ele vai fazer não sei o quê: pouco importa. Importa que durante uns momentos estivemos juntos. Agora interrompi esta crónica porque fui lá dentro espreitar o Santo António antes de lhe pôr o ponto final. Que pena um ponto final ser tão pequenino.

A. Lobo Antunes

segunda-feira, agosto 23, 2010

Reatar

Rasgões no tempo
perdem-se ao luar,
filtram-se à luz
nos reencontros.
E nasce o sorriso
meio perdido,
por que longe,
desencontrado.
E a amizade
revê-se nos olhos
que fitamos,
e lembra que agora
é o momento
de agarrar o abraço,
é o momento
de não poder
arrefecer o calor
que nos retoma.
E somos nós,
detentoras
do mesmo alento.

maria eduarda

domingo, agosto 22, 2010

Prémio


A querida Andy, do blogue Lua ofereceu este prémio ao nosso blogue (Sol, Gaby,Dinamene... por onde andam?????), que agradeço muito.
Aqui seguem as regras;

1. Colocar a imagem do selo no blogue;
2. Indicar o link do blogue que me indicou;
3. Indicar três blogues para receber o selo;
4. Comentar nos blogues indicados.

E os eleitos são:
as velas ardem sempre até ao fim;
Confissões de uma existência;
Just-a-girl.

domingo, agosto 15, 2010

Aguardo

É no ombro
onde sossegam
desabafos incontidos,
feridas abertas,
cicatrizes visíveis.
Acolho-os
no meu baú,
e ouço,
estendo a voz,
dou-te a calma,
aguardo-te serena,
quero-te feliz.
Marcas, mágoas, angústias,
posso suportá-las contigo,
para te dar espaço,
para te oferecer luz,
para que tu sejas
simplesmente TU!
Agarra a luz,
festeja comigo,
quando puderes,
eu espero!

maria eduarda

sexta-feira, agosto 13, 2010

Louvor a uma bombeira

Josefa, 21 anos, a viver com a mãe. Estudante de Engenharia Biomédica, trabalhadora de supermercado em part-time e bombeira voluntária. Acumulava trabalhos e não cargos - e essa pode ser uma primeira explicação para a não conhecermos. Afinal, um jovem daqueles que frequentamos nas revistas de consultório, arranja forma de chamar os holofotes. Se é futebolista, pinta o cabelo de cores impossíveis; se é cantora, mostra o futebolista com quem namora; e se quer ser mesmo importante, é mandatário de juventude. Não entra é na cabeça de uma jovem dispersar-se em ninharias acumuladas: um curso no Porto, caixeirinha em Santa Maria da Feira e bombeira de Verão. Daí não a conhecermos, à Josefa. Chegava-lhe, talvez, que um colega mais experiente dissesse dela: "Ela era das poucas pessoas com que um gajo sabia que podia contar nas piores alturas." Enfim, 15 minutos de fama só se ocorresse um azar... Aconteceu: anteontem, Josefa morreu em Monte Mêda, Gondomar, cercada das chamas dos outros que foi apagar de graça. A morte de uma jovem é sempre uma coisa tão enorme para os seus que, evidentemente, nem trato aqui. Interessa-me, na Josefa, relevar o que ela nos disse: que há miúdos de 21 anos que são estudantes e trabalhadores e bombeiros, sem nós sabermos. Como é possível, nos dias comuns e não de tragédia, não ouvirmos falar das Josefas que são o sal da nossa terra?

Por FERREIRA FERNANDES, Diário de Notícias

quinta-feira, agosto 12, 2010

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Ser consciencioso é estranhamente, por vezes, denegrir a parte pela qual a consciência se sente menos atraída. A consciência é apenas o instrumento, que nos permite inclinar a existência mais para um lado do que para o outro, como quando se vai a estatelar o nosso corpo mas ainda há a possibilidade de perceber a aproximação ao futuro da queda e num impulso emocional, ele é por nós orientado para onde há mais pedras ou não, para o receber.
É-se consciencioso quando se magoa alguém para se não  ferir alguém? Aqui o instrumento parece mesmo que não funciona, mas sim o medo. E quem nos inflige mais temor é sempre quem mais alto grita  ou pode ser ouvido nos seus gestos agigantados, porque quem se toma apenas como uma ideia, não sofrendo as três dimensões em si, perde também a voz, ou seja, torna-se inofensiva a sua expressão, o seu poder de mostrar sofrimento.
A consciência guia-se pelo susto que a assoma, mas parece ser que os seus ponteiros ainda assim se movimentam, como uma cauda de lagartixa abandonada.

sexta-feira, agosto 06, 2010

O leitor

Acredito que a vida de um livro enquanto está nas mãos do autor não é mais importante do que quando está nas mãos do leitor. O leitor é quase sempre um autor ele próprio. É ele que dá significado às palavras e por isso até acho muito interessante quando as pessoas me vêm apontar coisas que não eram minha intenção, mas que de facto estão lá. E há muitas outras coisas que foram minhas intenções e que nunca ninguém me referiu, e no entanto também lá estão. Se calhar alguém reparou nelas ou ainda vai reparar. Tudo o que um leitor leia num livro é legítimo porque nessa fase o leitor é tudo, é ele que faz o livro .

A leitura depara-se com uma série de obstáculos, é muito mais fácil sentarmo-nos no sofá a ver televisão do que a ler um jornal até. E a questão parece ser esta sociedade de facilitismo em que deixou de se perceber que as coisas que dão algum trabalho também são as que dão mais prazer, porque são conquistadas. A leitura dá algum trabalho e temos de conquistar um espaço para ela na nossa vida, temos de nos empenhar para absorvê-la completamente, para que faça sentido. Isso é que se perdeu um pouco de vista, mas penso que quem procura acabará por encontrar e tenho esperança de que as pessoas não deixem de procurar, não desistam, porque baixar os braços é ficar sempre no mesmo sítio.

José Luís Peixoto

sexta-feira, julho 30, 2010

Morreu António Feio

Ainda não falou dessa parte, da vivência íntima do problema. Só falou dos sintomas e do modo como lida com ele.

Acho que tenho reagido bem. Não senti pena de mim. Nem raiva, que é uma coisa frequente - porquê eu? Mas, também, desde miúdo achava que as pessoas morriam aos 50. Achava que os meus pais, quando tivessem 50 anos, eram velhos e morriam! [riso] Ficou qualquer coisa disso. Eu já vivi bastante. Se tivesse um acidente de automóvel [bate na madeira], um AVC, um treco desses e já fui, não ia mal servido. Não tive uma vida má. Não tenho nenhum problema em morrer. [pausa] Não me apetece muito. Mas se me dissessem: "Vais morrer amanhã!", "Olha, paciência."

in - Entrevista ao Público, 17.06.09

domingo, julho 25, 2010

Desafio da Em@

1. Por que é que criou um blogue e, quando o criou, tinha expectativas de que fosse popular?

Decidi criar um blogue onde pudesse publicar poemas/prosas, de autores conhecidos, colocar as minhas escritas e das minhas comparsas.Funcionou e funciona como uma fuga ao quotidiano das nossas profissões. Não estou só nesta aventura, dado que tenho parceiras leais.
Nunca me preocupei nem preocupo com a popularidade do blogue. Claro que vamos "conhecendo" pessoas muito interessantes, e gostamos dessa faceta.

2.
Em que data exacta iniciou o blogue?

Iniciei o blogue no dia 07 de Abril de 2008.

3. Nomeio os seguintes seguidores leais :

Anabela Magalhães
Andy

Em@
Lita

sábado, julho 24, 2010

Transmissão

Invadem os ares,
oferecem energia,
na beleza esguia,
no sussurrar do vento.
Transmitem poder,
força vital,
liberdade...

E alcançam-me,
em passagem,
até perder de vista,
a hélice
em movimento,
sempre em renovação,
bate-me a mensagem
de coragem,
de aceitação.

maria eduarda

sábado, julho 17, 2010

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

A memória talvez seja mais verdadeira quando a roubamos de si própria, ao lhe acrescentarmos ou lhe retirarmos algo, porque o que nela guardámos do real,  já foi ficção.

sexta-feira, julho 16, 2010

PRESENÇA

Eu tenho em mim os laços que nos ligam neste mundo;
E se estás perto, tenho os sons, a vida doce e nacarada,
O ar fresco da manhã sempre orvalhada
A brilhar, gota a gota, no meu Ser profundo.

Tenho a paz nos tempos mais atribulados,
A prudência quando penso em cair,
A virtude de quem sabe esperar e resistir
À vontade de fugir por caminhos maltratados.

Tenho a consciência de que não sou mais que grão de areia
Na mão de um Deus que sabe que eu existo;
Que sou marinheiro errante num mundo imprevisto
E sou o gigante colossal de uma epopeia.

E se estás perto, sei que a vida está comigo
E o sonho é a via perdida que procuro,
Que me guia no deserto, pelo escuro
Das esquinas onde sempre espreita o Perigo.

Sofia Pedro

sábado, julho 10, 2010

O QUE ME FAZ SENTIR BEM...

O que me faz sentir bem... a música e a cor,
A escrita, o estudo, o desenho e o “poeta-pintor”,
O sol quente na pele, um livro policial a estrear,
A liberdade de escolher o que vestir e o que usar,
Fernando Pessoa e os todos os filmes de acção,
Escrever o que quero sem objectivo e sem obrigação,
Esquecer que as horas existem e que o tempo passa
Estar confortável e ver a chuva através da vidraça,
Beber água fresca numa serra interminável
Gozar a sombra no calor de um dia inigualável,
Passar os meus conhecimentos para o futuro
E marcar a minha passagem por mais que seja duro,
Fazer rir, porque a alegria é contagiante,
Apoiar o destino da vida e fazer seguir em frente...

Olvidar a pessoa por detrás dos sentimentos
E respirar somente a força de todos os momentos...

Sónia Pedro

(Re)começar

No desassossego
buscamos a sombra,
e libertos da luz,
entramos em nós,
em análise,
em confronto,
em meditação...

Já tranquilos,
levantamos o véu,
e partimos
de alma lavada,
desafiando o Sol.

maria eduarda

sexta-feira, julho 09, 2010

ENTÃO...

Quando o mundo é mais negro do que compreendo,
Quando nada se passa como eu queria,
E a vida é o rio e a torrente que vão correndo
Levando à sua frente as calmas horas do meu dia;

Quando descubro os espinhos da minha rosa,
Quando a solidão e a tristeza não têm fim,
Quando a raiva que me assalta é tão silenciosa
Que só a sinto quando já está dentro de mim;

Quando me sento a contemplar o vazio,
Quando descubro que não tenho nada nem ninguém
E que percorro este caminho tão sombrio
Que mais ninguém quer e ninguém tem,

Sei que a vida é como uma montanha
E a subida faz-se tão penosamente
Que o cansaço é grande e a tentação tamanha
De fugir, descer a encosta e não seguir em frente;

Sei que sou aquilo que quiser, tudo ou nada,
Arrastada pouco a pouco sem cair;
E se chego ao fim da caminhada
Sei que verei o sol da alvorada:
É sempre mais fácil descer do que subir.

Sofia Pedro

quinta-feira, julho 08, 2010

O MENINO DOS PÉS FRIOS


Matilde Rosa Araújo



Era uma vez uma casa. Muito grande. Com um tecto altíssimo, nem sempre azul. Uma casa enorme onde habitava uma grande família: uma família tão grande que, por vezes, não julgavam os seus membros que se conheciam. E se deviam amar.

Houve um menino que entrou nesta casa estava ela toda branca. No chão tapetes de neve, cristais de água de uma brancura que estremecia. E as próprias árvores escorriam essa brancura. E frio. Iluminava-a uma estrela tão brilhante que, sobre o tecto, parecia que poisava sobre as nossas mãos.

Ora um dia, em que fazia anos em que esse menino entrara nessa casa, outro menino por ela andava com frio. Pelo chão, pelos milhões de cristais, caminhavam os seus pezitos enregelados. Tanto frio que nem podia olhar a estrela brilhante. Nem os milhões de cristais que pisava.

Uma mulher chorava a um canto dessa casa. E era triste essa mulher. Estava triste e cansada. Na casa nem tudo era belo. Ali estava aquele menino cheio de frio. E, como ele, tantos meninos.

E, já há quase dois mil anos, um menino entrara na asa, que ficou mais clara com a luz brilhante do tecto. O menino entrou só para dizer uma palavra pequenina: AMOR.

Então essa mulher perguntou ao menino dos pés frios:

– Tu não tens a tua casa?

O menino olhou a mulher triste e ficou triste. Ambos estavam tristes. E disse quase envergonhado que não.

– Tu não tens roupa? Sapatos? Um lume? Pão?

A cabeça (tão linda!) do menino ia abanando sempre a dizer não. A mulher triste começou a ter vergonha. Então ela consentia que na sua casa, na casa de todos, de tecto nem sempre azul, houvesse um menino sem roupa, sem lume, sem pão? Ela consentia uma coisa assim? E os outros também?

Escorregaram-lhe pela face já enrugada duas lágrimas transparentes. De água. Água como a que tombava do tecto, como a que se estendia nos mares.

E perguntou mais ao menino:

– E para onde vais? Eu dou-te qualquer coisa para o caminho...

O menino olhou para ela admirado. Não lhe disse para onde ia. Observou-lhe apenas:

– Tens duas gotas de água nos teus olhos que reflectem o céu azul e a lâmpada do tecto. Não sentes?

A mulher deixou cair pelo rosto enrugado as duas lágrimas. A pele, então, ficou-lhe mais lisa. E ela tornou-se menos curva. Ergueu-se. Estendeu, sorrindo, os dois braços ao menino. E disse:

– Fica. Perdoa.

E o menino ficou. Nos seus braços. Encostado ao seu peito. Com os pés aquecidos sobre o campo de neve.

E a mulher entendeu que não adiantava chorar ao canto da casa. E o seu vestido era uma bandeira. E o seu coração uma flor. Com o menino a seu lado.

«O sol e o menino dos pés frios» Matilde Rosa Araújo

sábado, julho 03, 2010

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Se reparares em tudo dispendendo o mesmo coração, se trouxeres aos ombros o caderno onde te deitas a perceber a vida e se em vez de nele rabiscares soltos poemas, iniciares o exercício das contas das escolhas e te aprimorares no uso do esquadro e das comparações, se ousares usar o tamborilar dos dedos para te acanhares no que foi ou será, temo que deixes de ouvir o Canto, aquele que exige o estado de distracção dos limites do mundo e dos próprios pensamentos.. o Canto, o Canto, o Canto que te encontra a sonhar no Agora!

Alentejo....

Alentejo...
Além Mar...
Além, te vejo...
A vaguear...
Na mão, o poejo,
A aromatizar!... Estou na praia, fecho os olhos e vejo a planície imensa, contínua, até ao horizonte... Entretanto, abro-os, devagarinho, e entre os sobreiros e as oliveiras da minha memória, encontro-te, de canivete no bolso, boina, bengala,…
Inspiro o cheiro a maresia, com um toque de poejo, e sorrio ao pensar nesta imensidão de mundo que me deixaste. Talvez fosses mesmo como a planície e o mar na infinitude que têm em comum...

Deixaste-me tanto, tanto do que foste sou eu agora, recordo as tuas memórias...

Saudades da tua voz, do brilho dos teus olhos pequenos, do toque das tuas mãos ásperas e meigas nas minhas, das tuas histórias...

Vejo agora, na luz das minhas lágrimas, de mar e de azeite, o reflexo do teu rosto sábio e feliz.

Farias 98 anos...

Meu querido João, quase centenário…

sexta-feira, julho 02, 2010

VOZ ACTIVA

Tocaram-me de longe… Foi breve o toque,
Mas logo todo o tecido da vida vibrou,
Como ondas que uma pedra alguém lançou
Num lago absorto, agitado pelo choque.

Senti a vida feita de energia invisível
A surgir como luz no meio da escuridão,
E lancei as imagens pré-fabricadas ao chão
Num único movimento imprevisível.

O que foi, o que é e tudo aquilo que será
Não é o que me dizem, mas o que alimentará
Os sonhos que me levam ao longo do caminho.

E se um dia fui aquela voz que eu julgava ser passiva,
Hoje compreendo que para se ser voz activa
Basta esta força omnipresente que não vejo, mas adivinho…

Sofia Pedro