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domingo, julho 27, 2008

A consequência dos semáforos


Odeio os semáforos. Em primeiro lugar porque estão sempre vermelhos quando tenho pressa e verdes quando não tenho pressa, sem falar do amarelo que provoca em mim uma indecisão horrível: travo ou acelero? travo ou acelero? travo ou acelero? acelero, depois travo, volto a acelerar e ao travar de novo já me entrou uma furgoneta pela porta, já se juntou uma data de gente na esperança de sangue, já um tipo de chave-inglesa na mão saiu da furgoneta a chamar-me Seu camelo, já a companhia de seguros me propõe calorosamente que a troque por uma rival qualquer, já não tenho carro por uma semana, já me ponho na borda do passeio a fazer sinais de náufrago aos táxis, já pago um dinheirão por cada viagem e ainda por cima tenho de aturar o pirilampo mágico e a Nossa senhora de alumínio no tablier, o esqueleto de plástico pendurado no retrovisor, o autocolante da menina de cabelos compridos e chapéu ao lado do aviso "Não fume que sou asmático", proximidade que me leva a supor que os problemas respiratórios se acentuaram devido a alguma perfídia secreta da menina que não consigo perceber qual seja.

A segunda e principal razão que me leva a odiar os semáforos é porque de cada vez que paro me surgem no vidro da janela criaturas inverosímeis: vendedores de jornais, vendedores de pensos rápidos, as senhoras virtuosas com uma caixa de metal ao peito que nos colam autoritariamente sobre o coração o caranguejo do Cancro, os matulões da Liga dos Cegos João de Deus nas vizinhanças de um altifalante sobre uma camioneta com um espadalhão novo em folha em cima, o sujeito digno a quem roubaram a carteira e que precisa de dinheiro para o comboio do Porto, o tuberculoso com o seu atestado comprovativo, toda a casta de aleijões (microcefálicos, macocefálicos, coxos, marrecos, estrábicos divergentes e convergentes, mãos com seis dedos, mãos sem dedo nenhum, mongolóides, dirigentes de partidos políticos, etc.).

sem contar o grupo dos Bombeiros Voluntários que necessita de uma ambulância, os finalistas de Coimbra, de capa e batina, que decidiram fazer uma viagem de curso à Birmânia e a rapaziada da heroína que não conseguiu roubar nenhum leitor de cassetes nesse dia.
resultado: no primeiro semáforo já não tenho trocos. No segundo não tenho casaco. No terceiro não tenho sapatos. No quinto estou nu. No sexto dei o Volkswagen. No sétimo aguardo que a luz passe a encarnado para assaltar por meu turno, de mistura com uma multidão de bombeiros, de estudantes, de drogados e de microcéfalos o primeiro automóvel que aparece. Em média mudo cinco vezes de vestimenta e de carro até chegar ao meu destino, e quando chego, ao volante de um camião TIR, a dançar numas calças enormes, os meus amigos queixam-se de eu não ser pontual.

António Lobo Antunes, Algumas Crónicas.

1 comentário:

solange disse...

Que agradável surpresa!!!
Depois de alguns dias ausente, por mil e um motivos, que bom ter aqui uma crónica do A. L. Antunes. É fantástico! E a ti agradeço, Didium, porque ler este autor faz-me ser cada dia melhor que ontem. Faz-me rir e comove-me, consegue transmitir tantas situações diferentes, em tão poucas palavras, que até nos faz lembrar de coisas que, às vezes, pensamos esquecidas. Já está a sair um novo livro dele. Merece, realmente, todos os prémios atribuídos. Bem haja!