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sexta-feira, julho 04, 2008

Os homens


Quanto mais alto o homem, de mais coisas tem que se privar. No píncaro não há lugar senão para o homem só. Quanto mais perfeito, mais completo; e quanto mais completo, menos outrem.

Estas considerações vieram ter comigo depois de ler num jornal a notícia da grande vida múltipla de um homem célebre. Era um milionário americano, e tinha sido tudo. Tivera quanto ambicionara -dinheiro, amores, afectos, dedicações, viagens, colecções. Não é que o dinheiro possa tudo, mas o grande magnetismo, com que se obtém muito dinheiro, pode, efectivamente, quase tudo.

Quando depunha o jornal sobre a mesa do café, já reflectia que o mesmo, na sua esfera, poderia dizer o caixeiro da praça, mais ou menos meu conhecido, que todos os dias almoça, como hoje está almoçando, na mesa ao fundo do canto. Tudo quanto o milionário teve, este homem teve; em menor grau, é certo, mas para a sua estatura. Os dois conseguiram o mesmo, nem há diferença de celebridade, porque aí também a diferença de ambientes estabelece a identidade. Não há ninguém no mundo que não conhecesse o nome do milionário americano; mas não há ninguém na praça de Lisboa que não conheça o nome do homem que está ali almoçando.

Estes homens, afinal, obtiveram tudo quanto a mão pode atingir, estendendo o braço.Variava neles o comprimento do braço; no resto eram iguais. Não consegui nunca ter inveja desta espécie de gente. Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcança, em viver onde se não está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim, como obstáculos, a própria realidade do mundo.
(...)
Com estas psicologias metafísicas se consolam os humildes como eu.

2-2-1931- Fernando Pessoa

1 comentário:

G. Ludovice disse...

Os sábios orientais diriam que a sabedoria é conseguir estar onde se está..