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sábado, julho 05, 2008

Com tão pouca coisa se constrói o mundo

Três dias no Porto, num hotel da Foz, com uma nesguinha de mar na janela. À noite, mesmo com as luzes do quarto apagadas, um halo de milagre sobre a cama, um dia mais secreto, mais íntimo, a modelar as coisas e os corpos. A claridade vinda não sei donde, da pele talvez, transfigurava tudo, as almofadas inchavam de luz, cada prega do lençol desfazia-se e refazia-se numa cadência de onda. O silêncio da rua que o silêncio da chuva, de tempos a tempos, aumentava, acrescentando palavras às vozes. Meu Deus, como com tão pouco se constrói o mundo. Uma mulher com duas canas de pesca enterradas na areia, a apanhar sei lá o quê do chão, limos parecia-me, e a jogá-los para longe. O vento feito de propósito para nos desarrumar o cabelo, deixando o resto do mundo em paz. Água cor de farda, barquitos. O charutinho do Zé Francisco espetado no queixo, a dar-lhe um ar de rebocador que transportava navios invisíveis atrás dele. Autógrafos na feira do livro, caras que não vou esquecer. Um sorriso numa cadeira, ao longe: com tão pouca coisa se constrói o mundo. Por exemplo com a gaivota que se passeava nos charcos de um penedo. Por exemplo com um sorriso que põe a boca entre parênteses, e por cima do sorriso um par de sobrancelhas góticas. Entre a boca e as sobrancelhas a região autónoma do nariz, com o seu governo próprio: com pouca coisa, realmente, se constrói o mundo. Não renego nada do que fui e, no entanto, a impressão de nascer: uma doçura que desconhecia. Uma tranquila certeza. O livro que estou a escrever mudou conforme os dias mudaram. Apesar de ser muito difícil torná-lo fácil vem vindo página a página com alegria. A imensa ternura que há em nós, uma plenitude absoluta. Dantes disperso como um rebanho sou um agora. E precisei de imensos anos
(não vou referir-me ao sofrimento, não me julgo no direito de me referir ao sofrimento)
para alcançar isto. Pertence-me. E mais nada importa.
Acabaram-se os três dias no Porto, é segunda-feira e chove. Não chovem nuvens apenas: chovem lembranças antigas, um piano, velhos cheiros quase esquecidos, o louco que vendia passarinhos a conversar consigo mesmo, era eu pequeno. Recuso a ideia que morreu, preciso dos seus gestos sem nexo, das discussões com a própria sombra. Chovem as pobres poesias que compunha aos sete anos, a mão não sei de quem
(uma pessoa crescida que não vejo)
a poisar-me no ombro. Chove a Beira Alta. Chovo eu a começar a Memória de Elefante, roidinho de medo de não ser capaz. Chove o moinho do jardim, as casas que construíram no lugar da quinta. A bicicleta que nunca tive, com mudanças e tudo. Chove o cabo da Guarda que me admoestava
– Rapaz
sem eu ter feito nada. Chovem existências anónimas, importantíssimas. Chovem as árvores lá fora, um pássaro perdido. Chove no Porto, em Torres Novas, na Figueira da Foz. Chove em todos os sítios em que estivemos. E, por dentro da chuva, a clara luz do dia. Começo a entender aquilo de que não tinha ideia, a habituar-me à esperança, à certeza. O padre que disse a missa de corpo presente do meu pai declarou que não fomos feitos para a morte. Agora sei que não fomos feitos para a morte, padre, julgava que éramos perecíveis, não nos sabia eternos. Mesmo a rapariga que viajou até à Áustria para acabar perto da irmã, ela que não possuía mais ninguém. A horrível injustiça disto. Qual é a cor da esperança? Verde? Hoje entrei numa merceariazita para comprar cigarros. Nunca lá vi fosse quem fosse excepto o dono, um senhor delicado. Tudo muito limpo e ninguém. Disse-lhe
– Obrigado
e ele, do fundo da sua solidão
– Obrigado nós.
A que nós se referia? Se calhar está rodeado de gente que a minha cegueira não permite ver.
– Obrigado nós.
como se fosse o Papa ou um rei. E de imediato os olhos para baixo, no balcão, atento como os xadrezistas. Vontade de ficar por ali à procura do nós, perguntar
– Você é o nós?
perguntar
– Onde param os outros?
Mas faltou-me coragem. Às sete desce os taipais, vai-se embora. Os outros, que compõem o nós, irão com ele? Ficam lá, no escuro, murmurando? É uma rua de travestis debruçados para os automóveis, alguns com cadeirinhas de bebé no banco de trás. O que procuram aqueles homens? Pensões miseráveis, corredores com uma lâmpada, tem-te não caias, ao fundo. Há um travesti que nenhum cliente aborda, a mostrar o peito enorme à indiferença dos automóveis, horas seguidas. Mesmo no inverno, com frio. Sem dinheiro para acabar na Áustria. Os clientes dos automóveis com cadeirinhas de bebé serão capazes de olhar as mulheres ao chegarem a casa? Serão capazes de estar com elas sem vergonha? A teia de mentiras de que a maior parte das relações é feita. Uma espécie de náusea em mim, de nojo. Qual espécie. Náusea em mim, nojo. Não compreendo. As cadeirinhas de bebé não me largam a ideia. Não distingo as feições não escuto as conversas. Caricaturas horríveis de mulheres. Como podem aqueles tipos encarar-se no espelho? Pelos vistos podem. Não conhecem de certeza um halo de milagre sobre a cama, um dia mais secreto, mais íntimo, a modelar as coisas e os corpos. As almofadas inchando de luz, cada prega do lençol a desfazer-se e a refazer-se numa cadência de onda, ignoram que com muito pouco se constrói o mundo. Explica-lhes que com muito pouco se constrói o mundo. Tu sabes. Já sabias antes de saber que sabias. Segreda-lhes.
– O mundo constrói-se com muito pouco
enquanto a mulher das duas canas de pesca
(nunca tinha visto uma mulher pescar sozinha)
vai atirando os limos para longe. Atira os clientes dos travestis também. As cadeiras de bebé, essas ficam. E o halo de milagre que há-de permanecer para sempre.
António Lobo Antunes

1 comentário:

solange disse...

Gosto taaaaannnnnnto das crónicas do A. Lobo Antunes, que não consigo pôr só excertos!!!