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quinta-feira, março 18, 2010

PROVOCAÇÕES

A primeira provocação ele aguentou calado. Na verdade, gritou e esperneou.
Mas todos os bebés fazem assim, mesmo os que nascem na maternidade,ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram provocando-o por toda a vida.
Não pode ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas chegou uma altura e tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em cubata. Depois perder a cubata, que estava onde não podia estar. Ir para uma cubata pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego.
Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos, subnutridos.
Para conseguir ajuda, só entrando na bicha. E a ajuda não ajudava.
Estavam a provocá-lo.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a ideia era dar-lhe uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo.
Concluiu que era provocação. Mais uma. Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo.
P'ra valer. Garantida. Animou-se. Mobilizou-se. Pegou na enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu, espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência, não!

Luís Fernando Veríssimo

3 comentários:

maria eduarda disse...

Gostei muito!
Bjs

Em@ disse...

Lindo Gabi!
Até me apetece levar comigo :)

solange disse...

E saber q casos destes são aos milhares, com tantos zeros q nem dá para contar!!!
Gostei de ler este texto, chocante, que está escrito de forma fabulosa e nos leva a repensar o que nós sabemos, mas q, às vezes, preferimos ignorar.
Colocá-lo aqui foi d mestra!