Pedaço do muro de Berlim, Berlim 2008
Foto:G.Ludovice
Como é que se sabe que se não sabe pensar?
Olha-se à volta?
Alterou-se a cor do céu nesse instante?
Volumosas dores percorrem velozmente o corpo?
Ouve-se um choro, por dentro ou mesmo na rua?
As portas de uma doce vida batem com força?
Temos mais e mais dinheiro?
Uma chuvada de ideias cai longe de nós?
Apertam-nos estranhamente os sapatos?
Não há indicadores fluorescentes..
porque é difícil aceitar que não sabemos pensar!!
Páginas
segunda-feira, setembro 29, 2008
Palavras de Charles Chaplin
"Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar todos, se possível, judeus, gentios… negros… brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo, não para o seu infortúnio. Por que temos de nos odiar e desprezar uns aos outros?
Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, desviamo-nos dele. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da produção veloz, mas sentimo-nos enclausurados dentro dela.
A máquina, que produz em grande escala, tem provocado a escassez. Os nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; a nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade; mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura! Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido."
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo, não para o seu infortúnio. Por que temos de nos odiar e desprezar uns aos outros?
Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, desviamo-nos dele. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da produção veloz, mas sentimo-nos enclausurados dentro dela.
A máquina, que produz em grande escala, tem provocado a escassez. Os nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; a nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade; mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura! Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido."
Charles Chaplin
Discurso proferido no final do filme “O Grande Ditador”
«Se eu estiver sentado ao lado de uma pessoa da minha geração e lhe disser: “Lembras-te?” , as palavras que eu utilizar hão-de enredar-se com acontecimentos na memória dessa pessoa, e é como se o ar entre nós estivesse vivo, a ouvir-nos. Dirijam as mesmas palavras a alguém duma geração mais jovem e será como atirar pedras para o mar. »
Doris Lessing in A FENDA
sexta-feira, setembro 26, 2008
"Arroz do céu"
"A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso; varreu-os com o resto do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: «Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.» Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os templos não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam. "
José Rodrigues Miguéis in Gente da Terceira Classe
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: «Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.» Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os templos não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam. "
José Rodrigues Miguéis in Gente da Terceira Classe
quinta-feira, setembro 25, 2008
quarta-feira, setembro 24, 2008
Tempo e Idade
A jovialidade e a coragem da vida, características da juventude, devem-se em parte ao facto de estarmos a subir a colina, sem ver a morte situada no sopé do outro lado. Porém, ao transpormos o cume, avistamos de facto a morte, até então conhecida só de ouvir dizer. Ora, como ao mesmo tempo a força vital começa a diminuir, a coragem também decresce, de modo que, nesse momento, uma seriedade sombria reprime a audácia juvenil e estampa-se no nosso rosto. Enquanto somos jovens, digam o que quiserem, consideramos a vida como sem fim e usamos o nosso tempo com prodigalidade. Contudo, quanto mais velhos ficamos, mais o economizamos. Na velhice, cada dia vivido desperta uma sensação semelhante à do delinquente ao dirigir-se ao julgamento.
Do ponto de vista da juventude, a vida é um futuro infinitamente longo; do da velhice, é um passado bastante breve. Desse modo, o começo apresenta-se-nos como as coisas ao serem vistas pela lente objectiva do binóculo de ópera; o fim, entretanto, como se vistas pela ocular.
Do ponto de vista da juventude, a vida é um futuro infinitamente longo; do da velhice, é um passado bastante breve. Desse modo, o começo apresenta-se-nos como as coisas ao serem vistas pela lente objectiva do binóculo de ópera; o fim, entretanto, como se vistas pela ocular.
É preciso ter envelhecido, portanto ter vivido muito, para reconhecer como a vida é breve.
O próprio tempo, na juventude, dá passos bem mais lentos. Por conseguinte, o primeiro quartel da vida é não só o mais feliz, mas também o mais longo, e deixa muito mais lembranças, sendo que cada um poderia contar muito mais coisas sobre ele do que sobre o segundo quartel.
Como na primavera do ano, também na da vida os dias acabam por tornar-se incomodamente longos. No outono de ambos, tornam-se mais breves, porém mais serenos e constantes.
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
terça-feira, setembro 23, 2008
THE UNENDING GIFT
Um pintor prometeu-nos um quadro
Agora, em New England, sei que ele morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza e a surpresa de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar determinado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se lá estivesse, seria como tempo essa coisa mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da minha casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e não ligada a ninguém.
De algum modo existe. Viverá e crescerá como uma música, e estará comigo até ao fim. Obrigado Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo de imortal).
Jorge Luís Borges
Agora, em New England, sei que ele morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza e a surpresa de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar determinado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se lá estivesse, seria como tempo essa coisa mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da minha casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e não ligada a ninguém.
De algum modo existe. Viverá e crescerá como uma música, e estará comigo até ao fim. Obrigado Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo de imortal).
Jorge Luís Borges
A ambição superada
Certo dia uma rica senhora viu, num antiquário, uma cadeira que era uma beleza. Negra, feita de mogno e cedro, custava uma fortuna. Era, porém, tão bela, que a mulher não titubeou - entrou, pagou, levou para casa. A cadeira era tão bonita que os outros móveis, antes tão lindos, começaram a parecer insuportáveis à simpática senhora. (Era simpática). Ela então resolveu vender todos os móveis e comprar outros que pudessem se equiparar à maravilhosa cadeira. E vendeu-os e comprou outros. Mas, então a casa que antes parecia tão bonita, ficou tão bem mobilada que se estabeleceu uma desarmonia flagrante entre casa e móveis. E a senhora começou a achar a casa horrível. E vendeu a casa e comprou uma outra maravilhosa.
Mas dentro daquela casa magnífica, mobilada de maneira esplendorosa, a mulher começou, pouco a pouco, a achar seu marido mesquinho. E trocou de marido. Mas mesmo assim não conseguia ser feliz. Pois naquela casa magnífica, com aqueles móveis admiráveis e aquele marido fabuloso, todo mundo começou a achá-la extremamente vulgar.
Millôr Fernandes, in 'Pif-Paf'
segunda-feira, setembro 22, 2008
sexta-feira, setembro 19, 2008
ESTE QUARTO NÃO ESTÁ VAZIO
Este quarto não está vazio!
Porque em cada canto há um pouquinho de mim...
E se olhares à tua volta, vês que,
afinal, ainda cá estou!
O coração bate
A saudade aperta
E apesar disso...
Vivemos! Continuamos a viver!
Longe...
Sós...
Com o silêncio!
Tristes?!
Não!
Porque eu estou lá... mas estou aqui!
Amor:
O sentimento que nos mata e, ao
mesmo tempo, nos faz viver!
Se não nos amássemos, não sofreríamos,
nem teríamos saudades!
Mas... p'ra viver só, é preferível morrer!
Por isso, mesmo longe
Estou feliz!
... morta, desgraçada, esfarrapada...
E muito amada!
Dinamene
Almodôvar,06-Jan.-91
Porque em cada canto há um pouquinho de mim...
E se olhares à tua volta, vês que,
afinal, ainda cá estou!
O coração bate
A saudade aperta
E apesar disso...
Vivemos! Continuamos a viver!
Longe...
Sós...
Com o silêncio!
Tristes?!
Não!
Porque eu estou lá... mas estou aqui!
Amor:
O sentimento que nos mata e, ao
mesmo tempo, nos faz viver!
Se não nos amássemos, não sofreríamos,
nem teríamos saudades!
Mas... p'ra viver só, é preferível morrer!
Por isso, mesmo longe
Estou feliz!
... morta, desgraçada, esfarrapada...
E muito amada!
Dinamene
Almodôvar,06-Jan.-91
quinta-feira, setembro 18, 2008
A solidão
A solidão!
Estar só em solidão,
Sem os outros,
Simplesmente só,
Com os outros em ausência.
Sentir o sossego!
Só por isso,
É imperioso,
De quando em vez,
Estar só,
Com o pensamento nos outros,
Sentindo a sua ausência.
A falta que se sente,
Quando se está só!
E aí, por momentos,
É imperioso pensar,
Que a solidão deve acontecer,
Só de quando em vez!
maria eduarda
A solidão é necessária ao convívio
As pessoas estão prontas a viver em bom entendimento, mas não querem ser viciadas em agradar. A condição humana assenta num pressuposto equilibrado: a vida agrada a uns e desagrada a outros.
Há uma parte da solidão que não podemos compor, e é melhor que assim seja, porque é na solidão que assenta a diferença tão falada. É isso que se receia: que nos proíbam a solidão, esse pequeno espinho que afinal nos faz solidários na multidão. Observem um grupo de pessoas que ri da mesma anedota: estão abertas a esse prazer do momento, mas não se distraem da faculdade de serem sós na sua fundamental forma de orgulho que é serem únicas. A moral consta duma certa dose de cortesia para parecermos bons. «Só Deus é bom.» Se percebermos esta conclusão, percebemos que imitar o bem é tudo o que humanamente nos é permitido.
Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'
Anton Tchekov
A CONFISSÃO
O dia estava luminoso, glacial... Sentia a alma leve como um cocheiro que recebe por engano uma moeda de ouro em vez de uma de prata. Tinha vontade de rir, de chorar, de rezar... Transportava-me ao sétimo céu. Haviam-me nomeado tesoureiro. O que me regozijava não era tanto a ideia de uns pequenos lucros ilícitos. Nessa época aida não me tornara ladrão e faria em bocados quem me dissesse que, com o tempo, começaria a fazer alguns desvios... Estava contente com outra coisa: com a minha promoção, o aumento insignificante dos meus vencimentos. Apenas isso.
Contudo, existia ainda outro motivo para me alegrar. No mesmo instante da minha nomeação sentira no nariz algo que se assemelhava a óculos cor-de-rosa. Pareceu-me de repente que os homens tinham mudado. Palavra de honra. Passaram por assim dizer a ser melhores. Os feios haviam ficado belos, os maus transformaram-se em bons, os soberbos em humildes, os misantropos em filantropos. Eu andava como que iluninado pela graça. Descobrira na humanidade qualidades que nunca suspeitara. Observava a gente, esfregando os olhos, e pensava: "É estranho ou sucedeu qualquer coisa ou então, dantes, eu era um imbecil e não reparei em todas essas virtudes" e concluí "Como é bela a humanidade."(...)
quarta-feira, setembro 17, 2008
terça-feira, setembro 16, 2008
Gramática de superfície
O que se sente não se consegue dizer
O que habitualmente se sofre (se sente) não se pode contar. Não é só porque isso é normalmente ridículo (porque a grande maior parte do que se pensa e sente é ridículo) e só o que é grande é que cai bem e vale portanto a pena dizer-se. É que o dizer-se altera o que se diz. O sentir é irredutível ao dizer. Só o estar sofrendo diz o sofrer. Na palavra ninguém o reconhece ou reconhece-o de outra maneira, essa maneira em que já o não reconhece o que o conta.
Mas dizia eu que a generalidade do que se pensa, sente, é ridícula. São raros os momentos de «elevação». A quase totalidade do tempo passamo-la distraídos, alheados em ideias sem interesse, nascidas de coisas sem interesse, as coisas que vai havendo à nossa volta ou no nosso divagar imaginativo ou que nem sequer chega a haver porque há só a abstracção total no quedarmo-nos pregados às coisas que nem vemos nem nos despertam ideia alguma e estão ali apenas como ponto de fixação do nosso absoluto vazio interior.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'
segunda-feira, setembro 15, 2008
domingo, setembro 14, 2008
Um voo cego a nada
Se eu nunca te disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.
Reinaldo Ferreira
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.
Reinaldo Ferreira
sábado, setembro 13, 2008
Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil
Foto:g.ludovice rio Tejo, 2008
O homem do cacilheiro não sabe que responder, se pela primeira vez lhe perguntam pela quantidade de energia e pelo real labor dos motores, que fazem com que aquela existência, longe de ser apenas deteriorável um dia, se sustenha para que tanto rume entre as margens.
Assemelha-se-lhe a questão, ao saber qual o volume de coração que deve soprar no desfiladeiro do amor, supondo que em derrocada deverá permanecer ágil.
Assemelha-se-lhe a questão, ao saber qual o volume de coração que deve soprar no desfiladeiro do amor, supondo que em derrocada deverá permanecer ágil.
Aforismos
"Com a mais poderosa das luzes, pode-se dissolver o mundo. Perante olhos fracos, este ganha consistência, perante os que são ainda mais fracos, crescem-lhe punhos, perante os mais fracos ainda torna-se púdico e despedaça aquele que ousa olhá-lo".
Para uma boda no campo, Franz Kafka
Para uma boda no campo, Franz Kafka
quinta-feira, setembro 11, 2008
Mesmo calados!
O que é que estamos a dizer quando estamos calados? A pergunta pode parecer paradoxal, mas não é. Enquanto seres humanos, estamos sempre a comunicar. Se não dizemos nada, falamos através dos gestos ou da roupa. E mesmo se desaparecermos do campo visual dos outros seres humanos, estamos a dizer aos outros que desaparecemos. E os outros perguntam: mas afinal de contas, por que é que ele desapareceu? Falar muito ou não dizer nada podem não ser coisas tão diferentes quanto isso.
Miguel Gaspar, in Público
Miguel Gaspar, in Público
"Se alguém me chama "egoísta", o que está a dizer-me?
Está a dizer-me "não penses em ti, pensa em mim."
Quem é o egoísta?
Desde há três ou quatro mil anos que o Talmude diz:
Se eu não pensar em mim, quem o fará?
E se eu só pensar em mim, quem serei eu?
E se não for agora, quando? Existem três categorias de pessoas:
Uma, a que, quando tem frio oferece toda a sua roupa de agasalho.
Outra, a que, quando sente frio, veste a sua roupa de agasalho.
E uma terceira que, quando sente frio, acende uma fogueira para se aquecer a si mesma e a todos os que queiram desfrutar do calor.
A primeira pessoa é suicida: irá morrer de frio.
A segunda é miserável: irá morrer sozinha.
A terceira é um ser humano normal, adulto e egoísta (acende a fogueira porque ele tem frio).
Eu quero ser aquele que acende milhares de fogueiras e, mais ainda, quero ser o que ensina milhares de seres humanos a acender fogueiras. Definitivamente, não sou humilde."
Jorge Bucay
Está a dizer-me "não penses em ti, pensa em mim."
Quem é o egoísta?
Desde há três ou quatro mil anos que o Talmude diz:
Se eu não pensar em mim, quem o fará?
E se eu só pensar em mim, quem serei eu?
E se não for agora, quando? Existem três categorias de pessoas:
Uma, a que, quando tem frio oferece toda a sua roupa de agasalho.
Outra, a que, quando sente frio, veste a sua roupa de agasalho.
E uma terceira que, quando sente frio, acende uma fogueira para se aquecer a si mesma e a todos os que queiram desfrutar do calor.
A primeira pessoa é suicida: irá morrer de frio.
A segunda é miserável: irá morrer sozinha.
A terceira é um ser humano normal, adulto e egoísta (acende a fogueira porque ele tem frio).
Eu quero ser aquele que acende milhares de fogueiras e, mais ainda, quero ser o que ensina milhares de seres humanos a acender fogueiras. Definitivamente, não sou humilde."
Jorge Bucay
quarta-feira, setembro 10, 2008
Os rebentos do umbuzeiro
Era uma aldeia muito pequena.
Tão pequena que não figurava nos grandes mapas nacionais.
Tão pequena que tinha apenas uma praça diminuta e, na sua única praça, uma única árvore.
Mas as pessoas adoravam a sua aldeia, amavam a sua praça e a sua árvore: um enorme umbuzeiro que se encontrava precisamente no centro da praça. E também no centro da vida quotidiana dos habitantes da aldeia: todas as tardes por volta das sete, depois do trabalho, os homens e as mulheres da aldeia encontravam-se na praça, recém-lavados, penteados e vestidos, para dar duas voltinhas ao umbuzeiro.
Durante anos, os jovens, os pais dos jovens e os pais dos pais dos jovens cruzavam-se diariamente à sombra do umbuzeiro.
Ali se haviam fechado negócios importantes, se haviam tomado decisões relativas ao município, celebrado casamentos e recordado os mortos durante anos e anos.
Um dia, começou a acontecer uma coisa diferente e maravilhosa: numa raiz lateral, saído do nada, brotou um raminho verde com duas únicas folhas viradas para o sol.
Era um rebento. O primeiro rebento que o umbuzeiro dera, desde sempre.
Depois da comoção, criou-se um comité para organizar uma festa em honra daquele acontecimento.
Para espanto dos organizadores, nem toda a gente da aldeia acorreu à celebração. Havia quem achasse que o rebento traria complicações.
A verdade é que, uns dias depois de ter aparecido o primeiro rebento, começou a brotar outro. E, no espaço de um mês, mais de uma vintena de raminhos verdes tinham assomado das velhas raízes do umbuzeiro.
A alegria de uns e a indiferença de outros iam durar pouco.
O alerta foi dado pelo guarda da praça. Algo se passava com o velho umbuzeiro. As suas folhas estavam mais amarelas do que nunca, estavam frágeis e caíam facilmente. A cortiça do tronco, que outrora era carnuda e macia, ficara ressequida e quebradiça. O guardião fez o seu diagnóstico.
— O umbuzeiro está doente.
E talvez morresse.
Nessa tarde, durante o passeio vespertino, estalou a discussão. Alguns começaram a dizer que a culpa era dos rebentos. Os seus argumentos eram concretos: tudo estava bem antes de eles aparecerem.
Os defensores dos rebentos diziam que uma coisa não tinha nada a ver com a outra e que os rebentos asseguravam o futuro, se acontecesse alguma coisa ao umbuzeiro.
Expostas as diferentes opiniões, formaram-se dois grupos claramente antagónicos. Um que defendia o velho umbuzeiro, outro que defendia os novos rebentos.
Sem saber como, a discussão tornou-se cada vez mais calorosa e os dois grupos distanciaram-se cada vez mais. Chegada a noite, decidiram tratar o assunto na reunião municipal do dia seguinte, para acalmar os ânimos.
Mas os ânimos não se acalmaram. No dia seguinte, os Defensores do Umbuzeiro, como começaram a apelidar-se, disseram que a solução do problema era voltar atrás. Os rebentos estavam a tirar as forças ao velho umbuzeiro e a actuar como parasitas da árvore. Tinham, portanto, de destruir os rebentos. Os Defensores da Vida, como se havia baptizado o segundo grupo, escutaram alvoroçados, porque também eles se tinham reunido para encontrar uma solução. Tinham de arrancar o velho umbuzeiro, que na verdade já cumprira o seu ciclo. A única coisa que estava a fazer era atirar sal e água aos recém-nascidos. Além disso, era inútil defender o umbuzeiro porque, de qualquer forma, a velha árvore já estava praticamente morta.
A discussão terminou em briga e a briga em escaramuça, onde não faltaram gritos, insultos e pontapés. A polícia pôs fim à contenda, mandando toda a gente para casa.
Os Defensores do Umbuzeiro reuniram-se nessa noite e decidiram que a situação era desesperada, já que os seus estúpidos adversários não iam ouvir os seus argumentos e, como tal, decidiram agir. Armados com tesouras de podar, paus e picaretas, decidiram atacar: destruídos os rebentos, a situação a negociar seria diferente.
Chegaram à praça todos contentes.
Ao aproximarem-se da árvore, viram que um grupo de pessoas estava a empilhar toros à volta do umbuzeiro. Eram os Defensores da Vida, que planeavam lançar-lhe fogo.
Ambos os grupos de defensores embrenharam-se noutra discussão, mas desta vez as suas mãos estavam armadas de ódio, rancor e vontade de destruir.
Vários rebentos foram pisados e danificados durante a escaramuça.
O velho umbuzeiro também sofreu danos graves no tronco e nos ramos.
Mais de vinte defensores de ambos os bandos acabaram a noite internados no hospital, com feridas de maior ou menor gravidade.
Na manhã seguinte, a praça tinha um aspecto completamente diferente. Os Defensores do Umbuzeiro tinham levantado uma cerca à volta da árvore e guardavam-na permanentemente com quatro pessoas armadas.
Os Defensores da Vida, por seu lado, tinham cavado um fosso e instalado uma vedação de arame farpado à volta dos rebentos que restavam, a fim de repelir qualquer ataque.
No resto da aldeia, a situação também se tornara insustentável: cada grupo, determinado a conseguir mais apoio, politizara a situação e obrigava o resto dos habitantes a tomar uma posição. Quem defendia o umbuzeiro era inimigo dos Defensores da Vida e quem defendia os rebentos tinha, por conseguinte, de cultivar um ódio de morte pelos Defensores do Umbuzeiro.
Por fim, decidiu-se deixar a decisão ao juiz de paz — que cumpria também as funções de sacerdote da pequena igreja da aldeia — que deveria dar o seu veredicto no domingo seguinte.
Dividido o público por uma corda, os dois bandos agrediam-se verbalmente. A gritaria era terrível e ninguém se conseguia fazer ouvir.
De repente, abriu-se a porta e, pelo corredor, seguido pelo olhar de ambas as partes, avançou o Velho, apoiado na sua bengala.
O Velho, que devia ter mais de cem anos, fundara aquela aldeia na sua juventude, planificara as suas ruas, sorteara os lotes de terreno e, claro está, plantara a árvore.
O Velho era respeitado por todos e a sua palavra conservava a lucidez que o acompanhara durante toda a sua vida.
O ancião afastou os braços que se ofereciam para o ajudar e, com dificuldade, subiu ao palco e falou.
— Seus tontos! — disse. — Autoproclamam-se Defensores do Umbuzeiro, Defensores da Vida... Defensores? Vocês são incapazes de defender seja o que for, porque a vossa única intenção é prejudicar todos aqueles que pensarem de maneira diferente da vossa.
Não se apercebem do vosso erro e tanto uns como os outros estão equivocados.
O umbuzeiro não é uma pedra. É um ser vivo e, como tal, tem um ciclo de vida. Esse ciclo inclui dar vida aos que continuarão a sua missão. Isto é: inclui preparar os rebentos para fazer deles novos umbuzeiros.
Mas os rebentos, seus estúpidos, ainda mal são umbuzeiros. Por isso, não poderiam viver se o umbuzeiro morresse e a vida do umbuzeiro não teria sentido se não fosse capaz de transformar-se numa vida nova.
Preparem-se, Defensores da Vida. Treinem e armem-se. Em breve chegará a hora de deitar fogo à casa dos vossos pais com eles lá dentro. Porque em breve eles envelhecerão e começarão a estorvar o vosso caminho.
Preparem-se, Defensores do Umbuzeiro. Pratiquem com os rebentos. Devem estar preparados para pisar e matar os vossos filhos quando eles quiserem substituir-vos ou superar-vos.
E autoproclamam-se vocês «Defensores»!
Vocês só querem é destruir.
E não se apercebem de
que destruindo,
destruirão também,
inexoravelmente,
tudo aquilo que pretendem defender.
»Pensem!
Não vos resta muito tempo...
E dito isto, desceu lentamente do palco e caminhou para a porta, perante o silêncio de todos.
... E foi-se embora.
Tão pequena que não figurava nos grandes mapas nacionais.
Tão pequena que tinha apenas uma praça diminuta e, na sua única praça, uma única árvore.
Mas as pessoas adoravam a sua aldeia, amavam a sua praça e a sua árvore: um enorme umbuzeiro que se encontrava precisamente no centro da praça. E também no centro da vida quotidiana dos habitantes da aldeia: todas as tardes por volta das sete, depois do trabalho, os homens e as mulheres da aldeia encontravam-se na praça, recém-lavados, penteados e vestidos, para dar duas voltinhas ao umbuzeiro.
Durante anos, os jovens, os pais dos jovens e os pais dos pais dos jovens cruzavam-se diariamente à sombra do umbuzeiro.
Ali se haviam fechado negócios importantes, se haviam tomado decisões relativas ao município, celebrado casamentos e recordado os mortos durante anos e anos.
Um dia, começou a acontecer uma coisa diferente e maravilhosa: numa raiz lateral, saído do nada, brotou um raminho verde com duas únicas folhas viradas para o sol.
Era um rebento. O primeiro rebento que o umbuzeiro dera, desde sempre.
Depois da comoção, criou-se um comité para organizar uma festa em honra daquele acontecimento.
Para espanto dos organizadores, nem toda a gente da aldeia acorreu à celebração. Havia quem achasse que o rebento traria complicações.
A verdade é que, uns dias depois de ter aparecido o primeiro rebento, começou a brotar outro. E, no espaço de um mês, mais de uma vintena de raminhos verdes tinham assomado das velhas raízes do umbuzeiro.
A alegria de uns e a indiferença de outros iam durar pouco.
O alerta foi dado pelo guarda da praça. Algo se passava com o velho umbuzeiro. As suas folhas estavam mais amarelas do que nunca, estavam frágeis e caíam facilmente. A cortiça do tronco, que outrora era carnuda e macia, ficara ressequida e quebradiça. O guardião fez o seu diagnóstico.
— O umbuzeiro está doente.
E talvez morresse.
Nessa tarde, durante o passeio vespertino, estalou a discussão. Alguns começaram a dizer que a culpa era dos rebentos. Os seus argumentos eram concretos: tudo estava bem antes de eles aparecerem.
Os defensores dos rebentos diziam que uma coisa não tinha nada a ver com a outra e que os rebentos asseguravam o futuro, se acontecesse alguma coisa ao umbuzeiro.
Expostas as diferentes opiniões, formaram-se dois grupos claramente antagónicos. Um que defendia o velho umbuzeiro, outro que defendia os novos rebentos.
Sem saber como, a discussão tornou-se cada vez mais calorosa e os dois grupos distanciaram-se cada vez mais. Chegada a noite, decidiram tratar o assunto na reunião municipal do dia seguinte, para acalmar os ânimos.
Mas os ânimos não se acalmaram. No dia seguinte, os Defensores do Umbuzeiro, como começaram a apelidar-se, disseram que a solução do problema era voltar atrás. Os rebentos estavam a tirar as forças ao velho umbuzeiro e a actuar como parasitas da árvore. Tinham, portanto, de destruir os rebentos. Os Defensores da Vida, como se havia baptizado o segundo grupo, escutaram alvoroçados, porque também eles se tinham reunido para encontrar uma solução. Tinham de arrancar o velho umbuzeiro, que na verdade já cumprira o seu ciclo. A única coisa que estava a fazer era atirar sal e água aos recém-nascidos. Além disso, era inútil defender o umbuzeiro porque, de qualquer forma, a velha árvore já estava praticamente morta.
A discussão terminou em briga e a briga em escaramuça, onde não faltaram gritos, insultos e pontapés. A polícia pôs fim à contenda, mandando toda a gente para casa.
Os Defensores do Umbuzeiro reuniram-se nessa noite e decidiram que a situação era desesperada, já que os seus estúpidos adversários não iam ouvir os seus argumentos e, como tal, decidiram agir. Armados com tesouras de podar, paus e picaretas, decidiram atacar: destruídos os rebentos, a situação a negociar seria diferente.
Chegaram à praça todos contentes.
Ao aproximarem-se da árvore, viram que um grupo de pessoas estava a empilhar toros à volta do umbuzeiro. Eram os Defensores da Vida, que planeavam lançar-lhe fogo.
Ambos os grupos de defensores embrenharam-se noutra discussão, mas desta vez as suas mãos estavam armadas de ódio, rancor e vontade de destruir.
Vários rebentos foram pisados e danificados durante a escaramuça.
O velho umbuzeiro também sofreu danos graves no tronco e nos ramos.
Mais de vinte defensores de ambos os bandos acabaram a noite internados no hospital, com feridas de maior ou menor gravidade.
Na manhã seguinte, a praça tinha um aspecto completamente diferente. Os Defensores do Umbuzeiro tinham levantado uma cerca à volta da árvore e guardavam-na permanentemente com quatro pessoas armadas.
Os Defensores da Vida, por seu lado, tinham cavado um fosso e instalado uma vedação de arame farpado à volta dos rebentos que restavam, a fim de repelir qualquer ataque.
No resto da aldeia, a situação também se tornara insustentável: cada grupo, determinado a conseguir mais apoio, politizara a situação e obrigava o resto dos habitantes a tomar uma posição. Quem defendia o umbuzeiro era inimigo dos Defensores da Vida e quem defendia os rebentos tinha, por conseguinte, de cultivar um ódio de morte pelos Defensores do Umbuzeiro.
Por fim, decidiu-se deixar a decisão ao juiz de paz — que cumpria também as funções de sacerdote da pequena igreja da aldeia — que deveria dar o seu veredicto no domingo seguinte.
Dividido o público por uma corda, os dois bandos agrediam-se verbalmente. A gritaria era terrível e ninguém se conseguia fazer ouvir.
De repente, abriu-se a porta e, pelo corredor, seguido pelo olhar de ambas as partes, avançou o Velho, apoiado na sua bengala.
O Velho, que devia ter mais de cem anos, fundara aquela aldeia na sua juventude, planificara as suas ruas, sorteara os lotes de terreno e, claro está, plantara a árvore.
O Velho era respeitado por todos e a sua palavra conservava a lucidez que o acompanhara durante toda a sua vida.
O ancião afastou os braços que se ofereciam para o ajudar e, com dificuldade, subiu ao palco e falou.
— Seus tontos! — disse. — Autoproclamam-se Defensores do Umbuzeiro, Defensores da Vida... Defensores? Vocês são incapazes de defender seja o que for, porque a vossa única intenção é prejudicar todos aqueles que pensarem de maneira diferente da vossa.
Não se apercebem do vosso erro e tanto uns como os outros estão equivocados.
O umbuzeiro não é uma pedra. É um ser vivo e, como tal, tem um ciclo de vida. Esse ciclo inclui dar vida aos que continuarão a sua missão. Isto é: inclui preparar os rebentos para fazer deles novos umbuzeiros.
Mas os rebentos, seus estúpidos, ainda mal são umbuzeiros. Por isso, não poderiam viver se o umbuzeiro morresse e a vida do umbuzeiro não teria sentido se não fosse capaz de transformar-se numa vida nova.
Preparem-se, Defensores da Vida. Treinem e armem-se. Em breve chegará a hora de deitar fogo à casa dos vossos pais com eles lá dentro. Porque em breve eles envelhecerão e começarão a estorvar o vosso caminho.
Preparem-se, Defensores do Umbuzeiro. Pratiquem com os rebentos. Devem estar preparados para pisar e matar os vossos filhos quando eles quiserem substituir-vos ou superar-vos.
E autoproclamam-se vocês «Defensores»!
Vocês só querem é destruir.
E não se apercebem de
que destruindo,
destruirão também,
inexoravelmente,
tudo aquilo que pretendem defender.
»Pensem!
Não vos resta muito tempo...
E dito isto, desceu lentamente do palco e caminhou para a porta, perante o silêncio de todos.
... E foi-se embora.
Jorge Bucay "Deixa-me que te conte"
Durmo e desdurmo
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Ouço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece - não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia-hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto.
Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, deveras, que canta segunda vez.
Fernando Pessoa
EU, ÀS VEZES
E agora começa a anoitecer tão cedo. A minha mãe conta que quando era pequeno, três anos, quatro, cinco, sei lá, me tornava melancólico ao crepúsculo. Não me lembro disso mas é capaz de ser verdade porque o fim do dia sempre me trouxe, sei lá porquê, uma espécie de tristeza mansa, um desejo vago de coisas mais vagas ainda, uma inquietação doce, um estado de alma impossível de exprimir, não inteiramente agradável, não inteiramente desagradável, estranho apenas, um (como dizer?) sorriso com uma lágrima tranquila dentro, percebem? Tão difícil traduzir as emoções em palavras, é tão pobre o vocabulário que temos e vou-me consumindo nos livros a procurar exprimir isto.
Bom, voltando ao princípio dizia que começa a anoitecer tão cedo, as árvores do dia que nada têm a ver com as árvores da noite, misteriosas, densas, falando, falando, a engordarem de pássaros. Janelas iluminadas e eu a imaginar as vidas atrás das cortinas, por vezes, num intervalo, um relógio, uma pagela, um lustre que me assusta, vultos. Gestos femininos bonitos sempre, a delicadeza com que as mulheres tocam nos objectos, a harmonia dos dedos: somos pesados e sem graça, nós os homens, ao pé delas. Pesados, brutos, canhestros: não possuímos seja o que for de ave ou de nuvem, a nossa carne é densa e gaguejante. Dá-me uma paz de eternidade ver uma mulher numa casa, o modo como o seu corpo habita o espaço, a forma como vestem, de si mesmas, os compartimentos, com um simples passo, um simples olhar. E depois uma espécie de inocência primordial, de leveza habitável: devo ter sido muito feliz na barriga da minha mãe, por dentro da sua voz, do seu sangue. Faz noventa anos agora e continua com dezoito. Conta a história da família que foram obrigados a puxar-me com ferros, não queria sair: como eu me compreendo.
E as árvores da noite a murmurarem sem fim, os prédios muito mais altos, os sons de uma nitidez de cristal. Um velhote a subir a rua com um saco de plástico, a horrível solidão dos seus olhos, o abandono da roupa. A solidão tem um cheiro próprio que se sente à distância. Vivem em bicos de pés, como que a pedir desculpa. Este passa o tempo a beber cerveja no cafezito e percebe-se o nível da espuma pela cor das pálpebras. Senhor João. Mora com um bicho qualquer num buraco qualquer, não se lamenta, não se queixa: dura. Uma destas semanas vem a morte
- Tenha paciência senhor João e mete-o numa caixa, o pobre. Fica o saco de plástico no passeio: não fica nada, enquanto os gestos das mulheres vão colorindo o silêncio. Sorrio-lhe sempre
- Boa tarde senhor João a espuma das pálpebras procura-me, descobre-me, põe a custo sílabas umas atrás das outras
- Boa tarde senhor doutor e lá vai ele curvado, a arrastar os sapatos, metido no seu blusão sujo. Foi ajudante de pedreiro: o que é agora? Como dorme, como acorda? Noventa anos, a minha mãe, que número impossível. Porque diabo consentiu que o tempo passasse, diga lá? Pequenina, frágil, indefesa. Quase cega. O sorriso mudou, transformou-se num clima resignado, com uma chuvinha perpétua. A minha tradutora romena
- Estou em Lisboa
e sempre que ela está em Lisboa lembro-me de Bucareste, da estrada para Constança, no Mar Negro, dos corvos. O riso nunca alegre do poeta Dinu Flamand, que tive em casa no tempo de Alcoitão. Somos amigos, conhecemo-nos na Finlândia. Meu Deus, tão grande o mundo. Intermináveis florestas de abetos, ramos prateados. Um escritor para outro
- Não batas a portas abertas
eu que tenho passado o tempo a bater a portas abertas por timidez, por vergonha. A porta aberta e eu à entrada, com os nós dos dedos, tac tac. Gosto da expressão nós dos dedos, eles que não possuem nós. Gosto da expressão trinta por uma linha, que não sei de onde vem. Os corvos da estrada de Constança subiam verticalmente do trigo. Garotos miseráveis, ciganos. As cicatrizes da ditadura por todo o lado. E começa a anoitecer tão cedo? O que fará o senhor João depois de meter a chave na fechadura? O que faremos nós se a noite não acabar nunca? Convoco os meus mortos, os meus vivos, aqueço as mãos na saudade de ti, e aquecer as mãos na saudade de ti há-de chegar para eu ser feliz. As vidas além das cortinas iguais à minha? Diferentes? Compro um lustre assustador? Não compro? Cheio de pingentes de plástico, de vidro? Qual o meu nome verdadeiro por trás do António que as pessoas conhecem? Não tenho nome: sou estas mãos, este corpo, esta caneta que escreve. Agora veio-me à cabeça o cemitério em Abriga, a casinha, uma menina a brincar: fico a vê-la brincar, encantado. O que haverá de mais eterno que uma menina a brincar? Em todas as mulheres, até na minha mãe, vejo uma menina a brincar. Nunca brincou comigo, apetece-lhe brincar comigo, mãe? Não calcula os jogos que sei. Quero viver. Não faço ideia como isto apareceu na página mas quero viver. Sou tanta gente às vezes. As árvores à noite que não cessam, não cessam. Não morro nunca, pois não? Não morro nunca. Prometo. Não se preocupem comigo, já prometi. Num intervalo de cortinas um relógio, uma pagela, a fotografia emoldurada de um bombeiro. O avô da Mãe Clara era oficial de Marinha. A empregada nova a pasmar para o retrato
- Quem é?
a Mãe Clara
- O meu avô
a empregada, apreciadora
- Um homem elegante
e depois, com respeito
- E um belo polícia
e a Mãe Clara furiosa. Dirão isto de mim? Um belo polícia? Recordaste-te de mim fardado, filhinha? Fui um belo polícia também. A delicadeza com que as mulheres tocam nos objectos, a harmonia dos dedos. Não tenho jeito. Estendo a palma para ti e não tenho jeito: sou apenas um homem. Não se importa de me dar um bocadinho da sua cerveja, senhor João? Só um gole?
- Boa tarde senhor doutor
e cada um de nós com um saco de plástico a subirmos a rua. Até onde?
Bom, voltando ao princípio dizia que começa a anoitecer tão cedo, as árvores do dia que nada têm a ver com as árvores da noite, misteriosas, densas, falando, falando, a engordarem de pássaros. Janelas iluminadas e eu a imaginar as vidas atrás das cortinas, por vezes, num intervalo, um relógio, uma pagela, um lustre que me assusta, vultos. Gestos femininos bonitos sempre, a delicadeza com que as mulheres tocam nos objectos, a harmonia dos dedos: somos pesados e sem graça, nós os homens, ao pé delas. Pesados, brutos, canhestros: não possuímos seja o que for de ave ou de nuvem, a nossa carne é densa e gaguejante. Dá-me uma paz de eternidade ver uma mulher numa casa, o modo como o seu corpo habita o espaço, a forma como vestem, de si mesmas, os compartimentos, com um simples passo, um simples olhar. E depois uma espécie de inocência primordial, de leveza habitável: devo ter sido muito feliz na barriga da minha mãe, por dentro da sua voz, do seu sangue. Faz noventa anos agora e continua com dezoito. Conta a história da família que foram obrigados a puxar-me com ferros, não queria sair: como eu me compreendo.
E as árvores da noite a murmurarem sem fim, os prédios muito mais altos, os sons de uma nitidez de cristal. Um velhote a subir a rua com um saco de plástico, a horrível solidão dos seus olhos, o abandono da roupa. A solidão tem um cheiro próprio que se sente à distância. Vivem em bicos de pés, como que a pedir desculpa. Este passa o tempo a beber cerveja no cafezito e percebe-se o nível da espuma pela cor das pálpebras. Senhor João. Mora com um bicho qualquer num buraco qualquer, não se lamenta, não se queixa: dura. Uma destas semanas vem a morte
- Tenha paciência senhor João e mete-o numa caixa, o pobre. Fica o saco de plástico no passeio: não fica nada, enquanto os gestos das mulheres vão colorindo o silêncio. Sorrio-lhe sempre
- Boa tarde senhor João a espuma das pálpebras procura-me, descobre-me, põe a custo sílabas umas atrás das outras
- Boa tarde senhor doutor e lá vai ele curvado, a arrastar os sapatos, metido no seu blusão sujo. Foi ajudante de pedreiro: o que é agora? Como dorme, como acorda? Noventa anos, a minha mãe, que número impossível. Porque diabo consentiu que o tempo passasse, diga lá? Pequenina, frágil, indefesa. Quase cega. O sorriso mudou, transformou-se num clima resignado, com uma chuvinha perpétua. A minha tradutora romena
- Estou em Lisboa
e sempre que ela está em Lisboa lembro-me de Bucareste, da estrada para Constança, no Mar Negro, dos corvos. O riso nunca alegre do poeta Dinu Flamand, que tive em casa no tempo de Alcoitão. Somos amigos, conhecemo-nos na Finlândia. Meu Deus, tão grande o mundo. Intermináveis florestas de abetos, ramos prateados. Um escritor para outro
- Não batas a portas abertas
eu que tenho passado o tempo a bater a portas abertas por timidez, por vergonha. A porta aberta e eu à entrada, com os nós dos dedos, tac tac. Gosto da expressão nós dos dedos, eles que não possuem nós. Gosto da expressão trinta por uma linha, que não sei de onde vem. Os corvos da estrada de Constança subiam verticalmente do trigo. Garotos miseráveis, ciganos. As cicatrizes da ditadura por todo o lado. E começa a anoitecer tão cedo? O que fará o senhor João depois de meter a chave na fechadura? O que faremos nós se a noite não acabar nunca? Convoco os meus mortos, os meus vivos, aqueço as mãos na saudade de ti, e aquecer as mãos na saudade de ti há-de chegar para eu ser feliz. As vidas além das cortinas iguais à minha? Diferentes? Compro um lustre assustador? Não compro? Cheio de pingentes de plástico, de vidro? Qual o meu nome verdadeiro por trás do António que as pessoas conhecem? Não tenho nome: sou estas mãos, este corpo, esta caneta que escreve. Agora veio-me à cabeça o cemitério em Abriga, a casinha, uma menina a brincar: fico a vê-la brincar, encantado. O que haverá de mais eterno que uma menina a brincar? Em todas as mulheres, até na minha mãe, vejo uma menina a brincar. Nunca brincou comigo, apetece-lhe brincar comigo, mãe? Não calcula os jogos que sei. Quero viver. Não faço ideia como isto apareceu na página mas quero viver. Sou tanta gente às vezes. As árvores à noite que não cessam, não cessam. Não morro nunca, pois não? Não morro nunca. Prometo. Não se preocupem comigo, já prometi. Num intervalo de cortinas um relógio, uma pagela, a fotografia emoldurada de um bombeiro. O avô da Mãe Clara era oficial de Marinha. A empregada nova a pasmar para o retrato
- Quem é?
a Mãe Clara
- O meu avô
a empregada, apreciadora
- Um homem elegante
e depois, com respeito
- E um belo polícia
e a Mãe Clara furiosa. Dirão isto de mim? Um belo polícia? Recordaste-te de mim fardado, filhinha? Fui um belo polícia também. A delicadeza com que as mulheres tocam nos objectos, a harmonia dos dedos. Não tenho jeito. Estendo a palma para ti e não tenho jeito: sou apenas um homem. Não se importa de me dar um bocadinho da sua cerveja, senhor João? Só um gole?
- Boa tarde senhor doutor
e cada um de nós com um saco de plástico a subirmos a rua. Até onde?
segunda-feira, setembro 08, 2008
É difícil escrever
Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores, basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias, o passado como se tivesse sido agora, o presente como um contínuo sem presente nem fim, mas, por muito que se esforcem os autores, uma habilidade não podem cometer, pôr por escrito, no mesmo tempo, dois casos no mesmo tempo acontecidos.
José Saramago, Jangada de Pedra
Há quem julgue que a dificuldade fica resolvida dividindo a página em duas colunas, lado a lado, mas o ardil é ingénuo, porque primeiro se escreveu uma e só depois a outra, sem esquecer que o leitor terá de ler primeiro esta e depois aquela, ou vice-versa, quem está bem são os cantores de ópera, cada um com a sua parte nos concertantes, três quatro cinco seis entre tenores baixos sopranos e barítonos, todos a cantar palavras diferentes, por exemplo, o cínico escarnecendo, a ingénua suplicando, o galã tardo em acudir, ao espectador o que lhe interessa é a música, já o leitor não é assim, quer tudo explicado, sílaba por sílaba e uma após outra, como aqui se mostram.
José Saramago, Jangada de Pedra
domingo, setembro 07, 2008
A consistência do Ser
Diz-se que quem modifica de tempos a tempos as suas ideias não merece qualquer confiança, porque faz supor que as suas últimas afirmações são tão erróneas como as anteriores. E, por outro lado, quem mantém as suas primeiras ideias e não as abandona facilmente, passa por teimoso e iludido. Perante estes dois juízos opostos da crítica, há só uma opção a fazer: permanecer-se aquilo que se é, e seguir-se apenas o próprio juízo.
Sigmund Freud, in 'As Palavras de Freud'
Pertenço a um país
Excerto de um dos textos de Prado Coelho. Vale MUITO a pena ler. E pensar sobre.
«… pertenço a um país onde a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito aos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga por um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO-SE OS DEMAIS ONDE ESTÃO.
Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correcto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos … e para eles mesmos. Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde a falta de pontualidade é um hábito. Onde os directores das empresas não valorizam o capital humano. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e depois reclamam do governo por não limpar os esgotos. Onde pessoas se queixam que a luz e a água são serviços caros. Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem que é “muito chato ter que ler”) e não há consciência nem memória política, histórica nem económica. Onde nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projectos e leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar a alguns.
Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser “compradas”, sem se fazer qualquer exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no autocarro, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não dar-lhe o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão. Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes».
«… pertenço a um país onde a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito aos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga por um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO-SE OS DEMAIS ONDE ESTÃO.
Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correcto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos … e para eles mesmos. Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde a falta de pontualidade é um hábito. Onde os directores das empresas não valorizam o capital humano. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e depois reclamam do governo por não limpar os esgotos. Onde pessoas se queixam que a luz e a água são serviços caros. Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem que é “muito chato ter que ler”) e não há consciência nem memória política, histórica nem económica. Onde nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projectos e leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar a alguns.
Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser “compradas”, sem se fazer qualquer exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no autocarro, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não dar-lhe o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão. Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes».
Eduardo Prado Coelho
sábado, setembro 06, 2008
Sigmund Freud
"Como fica forte uma pessoa quando está segura de ser amada!"
S.Freud
"Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos"
S.Freud
A última morada de Freud, no seu exílio em Londres.
Fotos:G.Ludovice 2008
"É quase impossível conciliar as exigências do instinto sexual com as da civilização." S.Freud
Leia, Ouça, Veja, mas sobretudo, Pense
Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Agostinho da Silva
Ser Surpreendido Por Tudo ou por Nada
Ser surpreendido por tudo é claro que é estúpido, e não ser supreendido por nada é algo que é considerado muito melhor. Mas isso não é realmente verdade. A minha mente não ser surpreendida por nada é muito mais estúpido do que ser surpreendido por tudo. Além disso, não ser surpreendido por nada é quase igual a não se sentir respeito por nada. E é realmente um homem estúpido aquele que é incapaz de sentir respeito.
Fiodor Dostoievski
Vivemos de Palavras
Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe. Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem.
Mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita: - Eu não vivi! eu não vivi! eu não vivi! - Há momentos em que deparamos com outra figura maior, que nos mete medo. A vida é só isto?
Raul Brandão, in "Húmus"
sexta-feira, setembro 05, 2008
Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil
Foto:G.Ludovice 2008
Hoje apercebo-me não propriamente do tempo, mas da mecânica do universo.
Vinte e oito voltas ao sol, assente na terra, pode dar alguém que tenha até agora olhado por mim, desde um ângulo zero de si no mundo, que entretanto se tornou melhor porque ao se tornar existente nele, o faz resplandecer não apenas a ele, mas também a quem sou eu.
Como se agradece a quem chega por bem? Mastigando o mesmo pão, esse mesmo quê !!
Para a minha Múkua, TÃO JÁ ESTRELA
Vinte e oito voltas ao sol, assente na terra, pode dar alguém que tenha até agora olhado por mim, desde um ângulo zero de si no mundo, que entretanto se tornou melhor porque ao se tornar existente nele, o faz resplandecer não apenas a ele, mas também a quem sou eu.
Como se agradece a quem chega por bem? Mastigando o mesmo pão, esse mesmo quê !!
Para a minha Múkua, TÃO JÁ ESTRELA
quinta-feira, setembro 04, 2008
O Mistério do Jogo das Paciências
O ponto de partida deste livro de Jostein Gaarder é a história de um garoto chamado Hans-Thomas e do seu pai, que cruzam a Europa, da Noruega à Grécia, à procura da mulher que os deixou oito anos antes. No meio da viagem, um livro misterioso desencadeia uma narrativa paralela, em que mitos gregos, maldições de família, náufragos e cartas de baralho, que ganham vida, transformam a viagem de Hans-Thomas numa autêntica iniciação à busca do conhecimento, à filosofia. Este livro é a história de muitas viagens fantásticas que se entrelaçam numa viagem única e ainda mais fantástica - e que só pode ser feita por um grande aventureiro: o leitor.
O livro é maravilhoso. O escritor escreve sobre um tema difícil, a filosofia, com uma linguagem simples e acessível, tendo como fio condutor uma história muito divertida.
O narrador é uma personagem infantil e o autor Jostein Gaarder consegue a excelência, pois nada soa a forçado ou absurdo. Traz-nos uma linguagem simples, apropriada ao vocabulário que se espera de uma criança. As conversas entre o pai e o filho ao longo da viagem são excelentes.
Este é, quanto a mim, um livro excepcional, maravilhoso, dos tais que nos prende da primeira à última linha.
O livro é maravilhoso. O escritor escreve sobre um tema difícil, a filosofia, com uma linguagem simples e acessível, tendo como fio condutor uma história muito divertida.
O narrador é uma personagem infantil e o autor Jostein Gaarder consegue a excelência, pois nada soa a forçado ou absurdo. Traz-nos uma linguagem simples, apropriada ao vocabulário que se espera de uma criança. As conversas entre o pai e o filho ao longo da viagem são excelentes.
Este é, quanto a mim, um livro excepcional, maravilhoso, dos tais que nos prende da primeira à última linha.
Ignorância Sábia
Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo, que se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens, depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua presunção e reconheceram a sua insignificância. (...)
Quando perguntaram ao homem mais sábio que já existiu o que ele sabia, ele respondeu que a única coisa que sabia era que nada sabia. A sua resposta confirma o que se diz, ou seja, que a mais vasta parcela do que sabemos é menor que a mais diminuta parcela do que ignoramos. Em outras palavras, aquilo que pensamos saber é parte — e parte ínfima — da nossa ignorância.
Michel de Montaigne, in 'Ensaios'
quarta-feira, setembro 03, 2008
terça-feira, setembro 02, 2008
À memória de Fernando Pessoa
Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!
António Botto, in "Poema de Cinza"
Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil
Penso em ti! Multiplicadas vezes, como se soubesse eu a tabuada de ontem. Que desdém sinto por não saber contar normalmente, sem que se me alargue o mundo desta maneira. Avisto as suas pontas ainda assim, e são só mar também. Tudo está engolido nele.
Tales de Mileto, que intuição!!
Tales de Mileto, que intuição!!
Recomeço
Observe a natureza,
tudo nela é recomeço.
No lugar da poda surgem os brotos novos.
Com a água, a planta viceja novamente (renasce).
Nada pára.
A própria terra se veste diferentemente todas as manhãs.
Isso acontece também connosco.
A ferida cicatriza, as dores desaparecem,
a doença é vencida pela saúde,
a calma vem após o nervosismo.
O descanso restitui as forças.
Recomece. Anime-se.
Se preciso, faça tudo novamente.
Assim, é a VIDA!
Autor desconhecido
tudo nela é recomeço.
No lugar da poda surgem os brotos novos.
Com a água, a planta viceja novamente (renasce).
Nada pára.
A própria terra se veste diferentemente todas as manhãs.
Isso acontece também connosco.
A ferida cicatriza, as dores desaparecem,
a doença é vencida pela saúde,
a calma vem após o nervosismo.
O descanso restitui as forças.
Recomece. Anime-se.
Se preciso, faça tudo novamente.
Assim, é a VIDA!
Autor desconhecido
O Céu
O céu colabora na nossa vida íntima, vive connosco, acompanha-nos na mudança do nosso ser; é um confidente, é um consolador; invoca-se, fala-se-lhe.
Olhar o céu é, nos nossos climas, uma ocasião de viver: instintivamente, voltamos para ele os nossos olhos. O poeta meridional, cheio de imagens e de cores, contempla-o; o burguês trivial, admira-o; pela manhã, abre-se a janela e vai-se ver o céu! É um íntimo sempre presente na nossa vida; o nosso estado depende dele: enevoado, entristece-nos; claro e lúcido, alegra-nos; cheio de nuvens eléctricas, enerva-nos. É no Céu que vemos Deus... E mesmo despovoado de deuses, é ainda para o homem o lugar donde ele tira força, consolação e esperança. A paisagem é feita por ele, a arte imita-o, os poetas cantam-no.
Eça de Queirós, in 'O Egipto'
o apocalipse dos trabalhadores
Este livro "é um retrato do nosso tempo, feito da precariedade e dessa esperança difícil. um retrato desenhado através de duas mulheres-a-dias, um reformado e um jovem ucraniano que reflectem sobre os caminhos sinuosos do engenho e da vontade humana num portugal com cada vez mais imigrantes e sobre a forma como isso parece perturbar a sociedade."
(na contracapa do livro)
O escritor, valter hugo mãe, que só escreve com minúsculas, Prémio José Saramago em Outubro de 2007, publicou em Julho o seu novo romance, o apocalipse dos trabalhadores , em que «maria da graça – mulher-a-dias em bragança esquecida do mundo – tem a ambição, não tão secreta como isso, de morrer de amor; e por essa razão sonha recorrentemente com a entrada no paraíso, onde vai à procura do senhor ferreira, seu antigo patrão, que, apesar de sovina e abusador, lhe falou de goya, rilke, bergman ou mozart como homens que impressionaram o próprio deus. mas às portas do céu acotovelam-se mercadores de souvenirs em brigas constantes e são pedro não faz mais do que a enxotar dali a cada visita. tal como maria da graça, todas as personagens deste livro buscam o seu paraíso; e, aflitas com a esperança, ou esperança nenhuma, de um dia serem felizes, acham que a felicidade vale qualquer risco, nem que seja para as lançar alegremente no abismo.»
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