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sábado, setembro 19, 2009

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

19 de Setembro 2009

Estou ainda em longa viagem, Pai.
Há dois anos que não deixo os meus olhos concentrarem-se no teu sorriso e não te encontro no sofá de baloiço na varanda, a esticares os teus brilhos para o horizonte verde nem me deparo com esses sonhos todos nas abas dos teus gestos, neles pendurados como animais teimosos enquanto sobre as teclas do piano, os teus braços e mãos valsam.
Pois é Pai, isto das viagens, é todo um mundo.
Apesar de ter tempo, é-me penoso usar algum dos meios de comunicação acessíveis a qualquer um, para apenas ouvir a tua voz. Não o tenho feito, estar em viagem não é fácil como o sabes.
Sim, tenho tido momentos de mão no queixo em algum sítio, e lá andas tu como em casa pelos meus pensamentos a espreitar aqui e ali nessa curiosidade de mais velho, que sabe que o mundo está sempre a mudar. Por vezes, apareces nalgum sonho a meio das minhas noites andantes cheias de desluas ou de luminosidades tão absolutas Pai, que é logo em ti que penso para naquele momento vermos o mesmo.
Viajo há dois anos Pai, e como te disse não é por falta de minutos e horas, que tenho adiado um postal que fosse, mas é como se me quisesse convencer que o facto de poder pensar em alguém é já beijá-lo e levar-lhe todo o meu último mundo; deve parecer-te um pensamento meio estranho, mas por sinal é até de grande utilidade e anima-me nesta viagem que se estende faz hoje, precisamente dois anos.
Hás-de perdoar, este meu silencio. Talvez tenhas já sentido o beijo.
Sim Pai, não foste tu que morreste... sou eu que ando por fora faz tempo.

7 comentários:

maria eduarda disse...

Que lindo Gabi!
Onde quer que o teu Pai, meu tio Zé esteja, já sentiu inúmeras vezes o teu beijo.
E acredita, eu ando por fora há tantos anos, e todos os dias beijo a minha Mãe, e convenço-me que o abraço que dei ao meu Pai, há quase dois anos, ainda não foi o último...
Beijos minha amiga!

G. Ludovice disse...

Thanks Amiga..

solange disse...

Este texto é também muito belo!!! Tanto quanto o do A. L. A., deixemo-nos de falsas modéstias. Escreves muito bem, com um estilo próprio,com palavras novas e tão adequadas.
Gosto muito de ler a tua prosa e emocionei-me muito ao ler-te, hoje.
Este texto ao "Pai" é maravilhoso, de uma grande ternura e com o saber a que nos vais habituando. Obrigada por nos teres deixado ler "esta carta" para "esse cavalo que faz sombra no mar"!!!
Bjo

maria eduarda disse...

E eu, volto a ler este teu texto, emocionante, belo, inteligente, também.
Beijocas prima, amiga, irmã!

G. Ludovice disse...

muchas gracias.. Didum e Solange.
yap, se temos cavalos que fazem sombra no mar.. e já o mar de si é tanto... q imaginar? q sentir? q fazer? como segurar isso?
bj

maria eduarda disse...

A esses "cavalos que fazem sombra no mar", não os podemos segurar, porque foram sempre muito longe, nem sei se teremos sequer a força necessária para lá chegar, e conseguir apoderar-nos do horizonte imenso,onde eles remaram muitas vezes contra a maré.

G. Ludovice disse...

sIM. Acredito q segurar é apenas manter em equilíbrio dentro de nós, o evaporado.. era a esse agurar q me referia, o difícl e belo rasto desarrumado algures em nós..
bj