Sexta-feira, 31 de Julho de 2009
Meus amigos,
(...) quero deixar aqui algumas reflexões sobre o que vi durante a minha última estadia no Bangladesh, que terminou há dias. Nos últimos dez anos, foi a terceira vez que fui ao Bangladesh, cuja capital Dhaka (floresta) foi fundada por padres portugueses no sec. XVII e onde ainda hoje continuam a morrer habitantes, de uma minoria católica, com apelidos portugueses: Albergaria, Soares, Costa…
O objectivo desta viagem foi o de contactar uma ONG local em Jessore, uns 280Km para sul de Dhaka, para financiarmos projectos que aprovei, nas áreas da saúde e educação, e tomar contacto com a realidade das tragédias repetitivas que ocorrem no delta do Ganges.
Os bengalis do Bangladesh são o mesmo povo que habita o estado indiano do West Bengal, que tem como capital Calcutá, onde já estive muitas vezes. Com a densidade populacional que tem (é como se Portugal tivesse 100 milhões de habitantes), qualquer tragédia climática, como tem acontecido em crescendo nas últimas duas décadas no delta do Ganges (maioritariamente situado no Bangladesh), afecta centenas de milhares ou milhões de pessoas nesse país. Até há duas ou três décadas havia, em média, um ciclone que fustigava o Golfo de Bengal com efeitos temíveis no delta do Ganges, todos os 7 a 10 anos.
Desde 1991 (ano em que um ciclone matou nesse delta mais de 200 000 pessoas) que os ciclones, como os furacões no Golfo do México, mercê das gravíssimas e aceleradas alterações climáticas em curso, fustigam o Golfo de Bengala, 2 a 3 vezes por ano. O último foi em Maio do corrente ano e foi isso que me levou aos dois distritos de delta (Satkhira e Khulna). Foram dias intensos de carro, estradas perigosíssimas com autocarros bailarinos lançados que nem mísseis, de travessias de jangadas, de barcos, de canoas…
O delta continua gravemente submerso, afectando profundamente a vida de muitas dezenas de milhares de pessoas que vivem em situações de insalubridade e de precariedade inimagináveis, amontoados em tugúrios, frágeis e instáveis, ao longo dos caminhos-estradas, os pontos mais altos que circundam os campos, hoje imensos lagos ou mares… As latrinas, múltiplas, à beira das águas correm directamente para as mesmas, salobras e extremamente poluídas mas de onde se bebe…
Não espanta que 80% das enfermidades tenham a ver com essa água infecta! Essas populações precisam de tudo embora ainda alguns consigam apanhar uns peixitos, que comem, e alguns camarões para venda. Precisam de água potável, comida, assistência médica, abrigos, saneamento básico (latrinas estanques) embora o espaço para tal seja milimétrico… Como sempre os três elos mais fracos dessa cadeia humana, toda flagelada, são as crianças, as mulheres, os idosos… seres humanos como nós!... caso alguém tenha esquecido, ou finja não ver, que eles são seres humanos como nós…
Perante tudo o que vi, e após conversas com as autoridades locais das comunidades afectadas em Satkhira, decidi que a AMI vai financiar a construção e apetrecho (equipamento, medicamentos, médico e enfermeiro locais) de um hospital rural com 10 camas, no ponto mais alto possível e com estrutura para resistir a cheias e furacões, e a sanitação (clorificação da água e latrinas). É pouco, mas é o que podemos fazer. Para os pseudo-cientistas, sem ética nem coluna vertebral, que insistem em dizer e escrever que as alterações climáticas são um mito proponho-lhes, se tiverem coragem, uma viagem ao delta do Ganges no Bangladesh.
O futuro será bem pior: degelo progressivo também dos Himalaias (origem do Ganges, Rio Amarelo…) e subida do nível das águas dos oceanos… Ainda mais dramático: centenas de milhões de pessoas serão afectadas ou mortas, em regiões e países densamente povoados e financeira e tecnologicamente frágeis, que não podem já construir os diques, como os meus familiares holandeses…
Desculpem-me: vou continuar a gritar!
Até breve!
Texto integral no blog de Fernando Nobre (o autor)