Passar a limpo a Matéria
Repor no seu lugar as cousas que os homens desarrumaram
Por não perceberem para que serviam
Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade,
As cortinas nas janelas da Sensação
e os capachos às portas da Percepção
Varrer os quartos da Observação
E limpar o pó das ideias simples...
Eis a minha vida, verso a verso.
O que vale a minha vida? No fim (não sei que fim)
Um diz: ganhei trezentos contos,
Outro diz: tive três mil dias de glória,
Outro diz: estive bem com a minha consciência e isso é bastante...
E eu, se lá aparecerem e me perguntarem o que fiz,
Direi: olhei para as cousas e mais nada.
E por isso trago aqui o Universo dentro da algibeira.
E se Deus me perguntar: e o que viste tu nas cousas?
Respondo: apenas as cousas...Tu não puseste lá mais nada.
E Deus, que é da mesma opinião, fará de mim uma nova espécie de santo.
Medo da morte?
Acordarei de outra maneira,
Talvez corpo, talvez continuidade, talvez renovado,
Mas acordarei.
Se até os átomos não dormem, por que hei-de ser eu só a dormir?
Então os meus versos têm sentido e o Universo não há-de ter sentido?
Em que geometria é que a parte excede o todo?
Em que biologia é que o volume dos orgãos
Tem mais vida que o corpo?
Alberto Caeiro
(Poema inédito de Fernando Pessoa, até Outubro de 2001. Descobri-o na "Visão")
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