A Senhora do Monte abriu o livro e disse na sua voz serena: “ A Vendedora de Sonhos”.
Todos os dias, uma hora antes do pôr-do-sol, as crianças subiam o monte e lá iam, curiosas por mais uma história que a senhora lhes leria.
Senhora do Monte... Chamavam-lhe assim, porque vivia numa casinha de granito, bem lá no cimo. Ninguém sabia o seu verdadeiro nome, porque ela dizia sempre que tinha o nome que lhe quisessem dar, hoje podia ser Maria, amanhã Rosalina, depois Esmeralda... Era à escolha do freguês! Mas todos lhe chamavam “Senhora do Monte” e talvez fosse esse o seu verdadeiro nome.
Ano após ano, trazia sempre histórias diferentes, que falavam de outros lugares da Terra, e até do espaço, que falavam de homens e mulheres, de animais, dos rios e do mar, da vida e dos sonhos. Nesse Verão, a Senhora do Monte trouxera um livro enorme, cheio de muitos contos, de palavrinhas encantadas e desenhos fantásticos. O Grande Livro tinha escrito na capa “Estórias da Trofa”. E os olhinhos das crianças brilhavam ao vê-lo e ao ouvirem as palavras que saíam, cheias de magia.
– Hoje vou começar a ler-vos a história da Vendedora de Sonhos. – dizia a Senhora, fitando os meninos e as meninas nos olhos.
Margarida nasceu num dia de Primavera, no campo, entre as flores. A sua mãe só teve tempo de se encostar a uma velha oliveira e dar à luz, entre os bem-me-queres e as margaridas, a sua Margarida . Nesse dia, a mãe estava a colher flores para vender no mercado, quando a menina deu sinal de querer sair. Na família, todos eram ou tinham sido feirantes: os pais, os tios e os primos, os avós, os bisavós, os trisavós, e por aí fora!... E foi assim que Margarida cresceu, entre as flores, os mercados, as feiras, as viagens de terra em terra. Margarida sabia que, um dia, quando fosse crescida, também seria feirante, só não sabia o que o destino lhe reservara para vender nos mercados das cidades ou aldeias.
Do monte via-se, ao longe, o mar e a aldeia lá em baixo, no vale, junto à ribeira.
Ao entardecer, o sol dourava todas as coisas, as crianças e a Senhora do Monte, sentados em círculo, no chão ou em banquinhos de pedra. Como por magia, todos se sentiam parte da história que ouviam e “viviam”. Uma vez por outra, uma vozinha interrompia com uma pergunta, ou um risinho, e a história prosseguia. Depois, quando o sol começava a querer esconder-se, do outro lado, para dar lugar à noite, os meninos e as meninas desciam até ao vale e iam para casa. Pelo caminho, conversavam uns com os outros.
– O quê que tu achas que a Margarida irá vender às feiras? – perguntou alguém.
À noite, em casa, as crianças jantavam com as famílias que tinham...
– Então, Ana, gostaste da história que foste ouvir ao monte? – queria saber, às vezes, a mãe da menina.
– Gostei, é muito bonita! – respondia Ana, enquanto comia as batatas e o feijão.
– Essa Senhora do Monte é muito estranha, só vem cá no Verão, parece que nem tem família e, com uma idade daquelas... Depois, estar sempre a contar histórias, não deve fazer muito bem à cabecinha... – resmungava o pai de Ana, já com um copito a mais.
Ana só tinha sete anos, mas era a mais velha das seis meninas filhas do casal Raposo. As mais pequeninas, com um aninho e pouco, eram três gémeas idênticas, que davam muito trabalho à família. Ana ajudava a mãe, cuidando das meninas. Mas, quando podia, lembrava-se das histórias da Senhora do Monte... e sonhava...
Num sorriso e num brilhar de olhos, a Senhora do Monte contava:
Pois é, um dia, já Margarida era uma mulher, o avô disse-lhe:
– Chegou a altura de começares a trabalhar e de teres uma banca só tua. Já viste que o negócio das flores não nos dá grande lucro, por isso, peço-te que penses no que gostavas de vender nas feiras e nos mercados.
Margarida ficou, um dia e tal, aflita, sem saber o que poderia um dia vender.
Até que, a conversar com um amigo cigano, também filho de feirantes, surgiu a ideia:
– Oh Margarida, porque não vendes farturas e sonhos?!...
–Sonhos?????? – pensou Margarida em voz alta – É isso mesmo, serei vendedora de sonhos!!!...
Foi logo ao encontro do avô, entusiasmada:
– Avô! Avô! Vou vender sonhos às pessoas... Vou vendê-los baratinhos, mas tristonhas como andam, vais ver que até farão fila à entrada da minha banca!
– Sonhos, Margarida?!.... Ninguém tem falta desses doces fritos! Não sei porque te deu para aí!
– Avô Manel, não percebes?!... Não são sonhos para comer... São sonhos para sonhar!
- Hã?!... Quê???... Valha-me Deus, não estás boa da cabeça!
– Ainda não reparaste que as pessoas andam de olhos baços, postos no chão?!... Que se enchem de preocupações: o trabalho, as contas para pagar, os filhos, as compras supérfluas, para esconder a tristeza?! Pois eu acho que precisam de sonhar... Como quando eram crianças e faziam viagens em dragões voadores, e conheciam fadas e duendes da floresta, e salvavam o mundo, e criavam personagens imaginárias para lhes fazerem companhia!
- Hummm.... Talvez! Mas como vais tu vender sonhos às pessoas?
– É simples. Basta dizerem-me com o que querem sonhar e eu começo a contar-lhes o seu próprio sonho... Como uma história! Vais ver que tenho jeito.
– Está bem, vamos experimentar! Agora, na banca das flores, também venderemos sonhos. Se resultar, terás a tua própria banca!
Calmamente, a Senhora do Monte fechou o livro, distribuiu leite e bolachas com mel por todos, e as vozinhas doces das crianças juntaram-se, em confusão de perguntas e respostas. As conversas misturaram-se com o vento, cruzaram-se com o chilrear dos pássaros que esvoaçavam para as árvores, onde iam descansar nessa noite.
Os olhos escuros e grandes de Ana olhavam atentamente para a Senhora do Monte e redescobriam nela “A contadora de sonhos”.
O Chico fazia mais uma das suas traquinices e rebolava pela terra, aos murros carinhosos, com o seu amigo de luta, Pedro. Tinham os dois tanta energia, que só mesmo as histórias da Senhora do Monte os deixavam algum tempo, enquanto durassem, sossegados!... Ana pegou pela mão a irmã de seis anos e lá foram, descendo o monte, saltitando e rindo.
Ao contrário de Ana, que só tinha irmãs, o Chico só tinha irmãos. Eram quatro rapazes que viviam todos com o pai. Talvez porque o Chico e a mãe se vissem raras vezes, ele tinha por ela um carinho muito especial e desmedido. Nem em dias de calor, como aqueles, largava o cachecol que esta lhe tinha feito. Parecia ser uma espécie de talismã. Também ele gostava das histórias da Senhora do Monte, mas nunca o dizia a ninguém, aparecia sorrateiro ou às lutas com os companheiros e ia, de olhar tímido e baixo. Mas à noite, debaixo dos lençóis, fechava os olhos ...e sonhava...
Uma manhã, quando acordou, comeu, à pressa, o pão com manteiga e saiu a correr... Tinha combinado ir com o Pedro nadar à ribeira. Nas férias, as crianças iam muitas vezes até à ribeira, quase sempre sozinhas ou com outras crianças mais velhas.
A maioria dos pais trabalhava e os miúdos ficavam por sua conta ou sob vigilância de algum avô, ou avó, ou tios... Só os pais de Pedro já estavam reformados. Até já eram avós! E ficavam a tomar conta do filho, das netinhas e de um ou outro coleguinha que aparecesse.
Depois de terem nadado no rio e capturado insectos e pequenos répteis, os dois amigos foram almoçar a casa dos pais de Pedro, que apesar da pouca paciência, tinham sempre uma sopa quente. A pedido dos velhotes, levaram ao campo meia dúzia de ovelhas que o casal possuía. Com eles, ia o cachorrinho Leão, peludo e sujo, que estava sempre de olho no reduzido rebanho. O Pedro era um menino risonho e traquina, que adorava trepar às árvores, puxar a lã às ovelhas, atirar pedras aos meninos que não gostava. Às vezes, os seus olhinhos contemplavam o horizonte e parecia-lhe ouvir a voz da amiga do monte... e então, o Pedro...sonhava...
Mas, nesse dia, o Pedro nem teve tempo de começar a sonhar, porque quem lhes dava as boas tardes, e estava mesmo ali à sua frente, era a Senhora do Monte.
– Então meninos, não sabia que guardavam ovelhas!...
– Guardamos ovelhas só às vezes, quando o meu pai está cansado! – exclamou, com um sorriso maroto, o Pedro.
– E vocês gostam?! – perguntou a Senhora.
– Sim, podemos passear e ninguém manda em nós! – explicou o Chico, com os olhinhos espertos, mas tímidos.
– Nós é que mandamos nas ovelhas! – riu-se o Pedro.
Ficaram algum tempo a falar do trabalho dos pastores, da casmurrice de algumas ovelhas e de outros pormenores, até que o Chico olhou intrigado para a Senhora e perguntou-lhe:
– E tu? Que fazes aqui?
– Eu?!... Olha, Chico, vim apanhar flores para pôr numa jarra. Gosto muito das flores do campo! Aqui, no vale, há flores com cores tão bonitas!...Observa esta!
– É lilás! – afirmou o Chico.
– Não é nada, é roxa!!... Não é, Senhora do Monte?!
– A mim, parece-me púrpura ...como o céu ao entardecer!
– Vieste apanhar flores, como na história da Margarida! – lembrou o Pedro.
– É verdade. E não as vendo no mercado, mas encho a minha casa com as suas cores...
– A tua casa parece um arco-íris. – disse, sorrindo, o Chico.
E riram os três.
– Tu não tens família?
– Tenho, Pedro, tenho filhos já crescidos que, agora, têm a sua própria vida!... Por isso não vêm comigo nas férias!...E também tenho uma neta que se chama Maria, que é muito meiguinha e gosta de histórias...como vocês!
– Porque não trouxeste a Maria contigo?
– Porque a Maria só tem dois anos, prefere ficar com os pais.
– E o teu marido?
– São muito curiosos, vocês!...Sabes, Chico, o meu marido é marinheiro, passa muito tempo a navegar ...Agora está lá para os mares do Norte.
– Ele vê baleias e golfinhos? – interrogou, atento, o Chico.
– Claro que sim. Diz que são muito bonitos e simpáticos.
– Eu quero ser tratador de golfinhos!
– E tu, Pedro? O que queres ser?!
– Bombeiro!
– Gostava de saber por que nunca falaste da tua vida antes. – indagou o Chico.
– Porque nunca me tinham perguntado. E porque gosto de vos contar histórias... Porque nas histórias que vos conto, também está um pouquinho da minha vida e das vossas!... Porque as histórias têm magia e vocês conhecem-me através delas... O som da minha voz, o meu sorriso, o meu amor, não é bom?
– Sim. – responderam os dois em simultâneo.
Nesse dia, a Senhora do Monte acompanhou os meninos até à casa dos pais de Pedro e foi com eles deixar as ovelhas no curral. Depois, subiram juntos o monte e, ao chegarem lá ao cimo, encontraram-se com mais sete crianças, que esperavam a continuação da história da vendedora de sonhos. A Senhora do Monte abriu o livro, mais uma vez, e as suas vidas voltaram a ser vividas no mundo de Margarida.
Margarida acordou cedo, vestiu-se bonita, fez duas tranças grandes no seu cabelo ruivo e, sorridente, encaminhou-se para o mercado. Começou a enfeitar a banca com conchas, missangas coloridas, desenhos, pedras semi-preciosas e outros pequenos tesouros que possuía.
Quando a avó chegou com as flores, já se lia num bonito cartaz, feito à mão “VENDEM-SE SONHOS”. A avó olhou admirada para a decoração e começou a colocar as suas flores para vender.
Logo apareceu o senhor Fausto, que trabalhava numa fábrica ali na Trofa e, todos os dias, levava uma rosa vermelha à sua colega Rosa Maria, por quem se dizia apaixonado.
– Bom dia, minhas meninas!
- Bom dia, senhor Fausto, então a dona Rosa já se enamorou de si? – perguntou a avó.
- Ai a Rosinha...eu sei que ela gosta de mim, mas a viúva não se quer juntar de novo! Diz-me que é mulher de um homem só. Qualquer dia desisto de lhe fazer a corte!... Mas ainda não é hoje, levo esta flor para lhe oferecer.
– Leve também um sonho para si. Ainda tem uns minutos?!
Pois é, o senhor Fausto foi o primeiro comprador de sonhos da Margarida. Pediu-lhe um com muitos beijos da Rosinha, com passeios à beira rio e sonhou o Amor. Foi um sonho de cinco minutos, que o homem tinha de ir trabalhar .... Mas valeu-lhe um começar do dia mais sorridente e mais esperançoso.
Depois dele, muitos se seguiram...uns sonhavam poder voar, outros ficar ricos, outros ter muitos filhos, outros conhecer o mundo todo... havia sonhos para todos os gostos, e sem desgostos!
– Eu queria conhecer uma terra cheia de calor e sol...
– Margarida, hoje faz-me voar com asas de algodão.
– Era bom que o meu vinho fosse o melhor do ano. O melhor da Trofa!
E por aí fora, seguiam-se muitos sonhos, mais possíveis ou mais impossíveis!... Margarida deixava todos com um pé na terra e outro voando em busca de ilusões.
A banca das flores vendia sonhos e Margarida sentia-se satisfeita com o seu trabalho.
Um dia, o senhor Fausto deixou de comprar sonhos “cor de rosa” a Margarida, pois que a dona Rosa da fábrica resolvera juntar os trapinhos com ele. A partir daí, todas as manhãs, aparecia ele lustroso e sorridente, para comprar uma rosa flor à Rosa mulher.
– E que sonho tinha a Margarida? – perguntou a Ana.
– Pois é, Ana, a Margarida também tinha um sonho...
Queria navegar, ir por esse mar, ver golfinhos a saltar.
Com o tempo, conseguiu ter a sua própria banca, onde até um sofá de veludo havia, para que as pessoas descansassem, enquanto sonhavam. Margarida sentia que tinha este trabalho por herança, porque o destino de todos, na sua família, era vender nas feiras.
Claro que Margarida gostava de vender magia, era amor que dava às pessoas e o trabalho tornava-se muito criativo. Porém, o sonho de Margarida era ser marinheira. Desde pequenina que queria estar em alto mar e deliciava-se com as aventuras de Cousteau e as histórias de Moby Dick. Embora vendesse sonhos às pessoas, Margarida não acreditava na realização do seu próprio sonho. Até ao dia em que apareceu, na banca dos sonhos, um jovem simpático, com a pele bronzeada e sorridente, que sonhava levar Margarida no seu veleiro, a conhecer a calmaria e a tempestade dos Oceanos.
De repente levantou-se um vento forte no monte e, dos céus, desceu uma nuvem que parecia um barquinho . A Senhora do Monte entregou o Grande Livro de Estórias a Ana e subiu para a nuvem azul, acenando com a mão. E subiu, subiu, subiu... e os meninos e as meninas perderam-na de vista, como quando os balões sobem tão alto que deixam de ser um pontinho lá em cima. Do céu caíram minúsculas gotas de água, com sabor a sal. Não sei se chuva, não sei se mar ...Talvez minúsculas sementes de amor e saudade, caindo dos olhos da Senhora do Monte.
As crianças entreolharam-se espantadas!... Estariam a sonhar?!...
– Cá para mim a Senhora do Monte foi de boleia num sonho azul! – exclamou o Pedro, rindo.
– Ah!!!... Se contamos isto a alguém, não acreditam em nós! – garantiu o Chico.
– Pouco importa, fica um segredo... dizemos que a Senhora se foi embora e nos deixou o livro... – sugeriu a Ana.
– E até que é verdade. – concordou o Chico.
– Acho que ela era bruxa, ou fada, ou qualquer coisa assim... De tanto ler histórias, parece que se tornou personagem de uma.
– Vejam, a Senhora do Monte deixou-nos uma mensagem no livro!
E a Ana leu:
“Não se esqueçam que sonhar faz parte de nós, como a realidade, e que, às vezes, os sonhos e a realidade se misturam. Nos sonhos está sempre um pouco da nossa realidade, tal como, no dia a dia, também estão os nossos sonhos. Quando lês uma história, descobres um mundo novo que existe, que te é dado a conhecer, escrito no papel, e do qual passas a fazer parte. Também as nossas vidas são belas histórias, que nós próprios temos o poder de transformar, consoante os nossos desejos e os nossos sonhos”.
A partir desse dia as crianças continuaram a encontrar-se na casa “abandonada” do monte e a contar histórias ao entardecer.
A Ana tornou-se escritora, o Pedro... bombeiro, e o Chico, treinador de golfinhos.
Conto infantil/juvenil de Dinamene Ribeiro de Sousa