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quarta-feira, dezembro 31, 2008

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Existirão imensos mapas mentais acerca do tempo.
Será este uma sensação mais do que uma visão, num universo demasiado rápido.
Chega Janeiro ou o que isso seja, como uma bala ou um focinho súbito de um comboio a alta velocidade, na exacta direcção não dos carris da suposta estação mas direito aos corpos que nela esperam, seu favorito alvo, a matéria viva.

2009

Mais um ano que aí vem,
continuemos juntos também.
Cultivemos a paz, a amizade, a harmonia,
para prosseguirmos em sintonia.

maria eduarda

terça-feira, dezembro 30, 2008

Enigmas

Olha-me nos olhos!
O gesto, esse, às vezes
é duvidoso na leitura,
mas os olhos
são o espelho do meu sentir,
claras manhãs de céu limpo,
reflexo do meu ser,
âmago em mim.
Olha-me nos olhos!
Faz um esforço,
último pedido do condenado,
lê a mensagem,
decifra-a,
não me desiludas,
não deturpes a leitura!
Do olhar eu me sirvo,
quando as palavras sobejam,
quando elas estão coladas ao olhar
que te dirijo, em vão...
Esta tentativa,
para que me leias,
despida no ser,
verdadeira, genuína, eu.
Olha-me nos olhos!

maria eduarda

segunda-feira, dezembro 29, 2008

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Dresden 2008
foto:G.Ludovice

Tenho um punhado de meias lanternas, para o caminho.
Umas vezes são lua, outras pensamentos que se encostaram a um fundo inventado.
Nego-me a contar as suas rugas, a corrigir a sua nobre teimosia, a esclarecer o que é certo e errado neste mundo moderno, a espelhar a sua fragilidade.
Mentir-lhe-ia repetidamente, se isso implicasse um seu sorriso mais fundo.
Cavaria esse esgar em seu rosto, todos os dias.
Não importa a verdade, no outono da vida.

Dez reis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule,
flutuando no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

António Gedeão

sábado, dezembro 27, 2008

Criatividade Cega

Entre o caos e a harmonia. A cegueira pensada é uma aflição mental, uma das formas do isolamento porque a invisibilidade não é obstáculo: é apenas um fenómeno subtilíssimo da ausência. Na criação tudo é potencialmente uma entidade distinta da matéria, uma improbabilidade, porque, como diziam os antigos, diante da luz somos todos cegos.

Ana Hatherly, in 'Tisanas'

sexta-feira, dezembro 26, 2008

Coloquei um casaco, fui à praia sentir a maresia.
Ainda era cedo, na praia ninguém mais havia...
Senão eu, o mar…
E o meu coração de emoções a transbordar!
Também o frio, a areia....
A saudade no ar que vagueia.

Fui à praia para perguntar,
Ao mar,
Porquê??
Porque os levaste, porquê?
O mar imenso de azul inocente,
Brincou-me nos pés, verdade que não mente.
Molhou-me de espuma e sal,
Disse-me que não fez por mal.

Então na minha dor,
Também no meu saudoso amor,
De areia fiz uma bola.
E atirei-a ao mar que nos pés se enrola.
O pedaço de areia se refez
Nesse mar que em meus pés se desfez!

Já a raiva tinha ido em perguntas sem resposta,
Em grãos de areia lançados ao mar que se enrosca!
Já toda eu era água e sal, lágrimas e mar
Saudade que fica para durar.
E da saudade, da raiva, da tristeza,
Surgiu então uma certeza
Onde eu estiver, também estarão,
Preenchendo-me o coração.

Memórias do que foram,
Esperanças do que anunciaram…
Saudades do que viveram,
Ausências do que sonharam.
Imensos sempre,
Infinitos certamente…

Amizade

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida! Mas é delicioso que saibam que os adoro, embora não declare e não os procure sempre!
Vinicius de Morais

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Vésperas de Natal


Vou contar-vos um acontecimento real,

Nestes dias que antecedem o Natal…

Ontem mesmo fiz as últimas compras e tal

Num mini-mercado banal.

E vi não um, nem quatro polícias, mas um número surreal

Uma mão cheia, ou mais, desse pessoal

Fardardo e armado

A levar um pobre homem coitado

Que, no mínimo, esfomeado

Resolveu levar salsichas sem pagar

E não estou a brincar,

Nem a ironizar

Parecia de um país de leste,

Foi levado como peste,

Como se a fome fosse um crime afinal,

Em vésperas de Natal.

E não sei se por zelo excessivo,

Ou por ócio da profissão,

Ou só por vontade de lhe tirar as salsichas da mão,

Não sei se por xenofobismo expressivo,

A verdade é que parecia que o desgraçado

Tinha levado o mini-mercado!



Dinamene

Hoje é dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhe darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu? Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bençãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é da gente pequena.
Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta.
De manhãzinha salta da cama, corre à cozinha mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!! Na branda macieza da matutina luz aguarda-o a surpresa do Menino Jesus.
Jesus, o doce Jesus, o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora.
Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mortas:
tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá - tá. Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal, dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas.
António Gedeão

Chove. É dia de Natal

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa

terça-feira, dezembro 23, 2008

Sobre a verdade..

A sua recordação de ontem, destrói a percepção do que é hoje.
Krishnamurti, Sobre a verdade, Ed Cultrix

domingo, dezembro 21, 2008

Balada de Sempre

Espero a tua vinda,
a tua vinda, em dia de lua cheia.
debruço - me sobre a noite
inventando crescentes e luares.
Espero o momento da chegada
com o cansaço e o ardor de todas as chegadas.
Rasgarás nuvens, estradas,abrindo clareiras
nas sebes e nas ciladas.
Saltarás por cima de mares,
de planícies e relevos- ânsia alada
no meu desejo imaginada.
Mas enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar aí além,
lambe-me os braços hirtos,
braços verdes,
algas de sonho- e desenha ironias na areia molhada.

Fernando Namora

sábado, dezembro 20, 2008

Renascer

A água que flui
em céu aberto,
ondula a tua vontade
de querer naufragar,
no nosso existir.
Nada contra a corrente,
traz contigo o som do mar
e, mesmo em sofreguidão,
ganha um novo fôlego.
Aproxima-te da praia,
porque onde a ondulação rebenta,
tudo se renova:
a vontade de renascer,
de rejuvenescer,
de ser assim,
um constante viver!

maria eduarda

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Uma pedra não estaria em evolução se se transformasse numa criança, nem o reverso, mas em queda no caos, que é uma espécie de início de tudo o que deixou de ser.

Algo se tem insidiosamente alterado pelas existências.
O próprio calor do lume, a acerbada afiada face daquilo que é por natureza causa de dor ou prazer, o que é em si uma arguta estrutura e mesmo, todas as definições.

Um corcel negro só sabe de si não sabendo, mas arfando voluptuosamente pelo desmedido que traz em si e nunca por nunca reflectindo, que é afinal a tarefa do atento cocheiro que conduz o carro puxado pelos dois antagónicos cavalos e que está estampada na docilidade do corcel branco, o que faz com que a viagem conjunta seja menos interessante, mas contudo possível.

Por que exiges ao teu cocheiro uma bala funda em ti, corcel negro, senão porque te tornaste distante da tua própria natureza, preferindo estar como se fosses o outro?
Só podes estar terrivelmente doente de algo que seria uma doença de chão, para uma ave nobre.

Pintura:Guido Sieber
Los amantes

¿Quién los ve andar por la ciudad si todos están ciegos ?
Ellos se toman de la mano: algo habla entre sus dedos, lenguas dulces lamen la húmeda palma, corren por las falanges, y arriba está la noche llena de ojos.
Son los amantes, su isla flota a la deriva hacia muertes de césped, hacia puertos que se abren entre sábanas. Todo se desordena a través de ellos, todo encuentra su cifra escamoteada; pero ellos ni siquiera sabenque mientras ruedan en su amarga arena hay una pausa en la obra de la nada, el tigre es un jardín que juega.
Amanece en los carros de basura, empiezan a salir los ciegos, el ministerio abre sus puertas. Los amantes rendidos se miran y se tocan una vez más antes de oler el día.
Ya están vestidos, ya se van por la calle.
Y es sólo entonces cuando están muertos, cuando están vestidos, que la ciudad los recupera hipócritay les impone los deberes cotidianos.

sexta-feira, dezembro 19, 2008

....Quem conhece os poderes de uma mãe em exercício de saudade?...
Mia Couto, Cronicando, Ed.Caminho



Branco






Visto-me de branco…
Que se há um fim também há começo.
E danço a branca eternidade…

Lembro-me do dourado solar dos seus cabelos,
Que teimava em domar , prendendo os caracóis em ganchos,
Sinto falta do seu ondulado sorriso, espontâneo e sincero…
Das gargalhadas,
Da voz rouca, sempre alta,

Nesse volume que a todos permite ouvir.
Por vezes vislumbro-a, elegante sempre, bonita, airosa…
Recordo-me do carinho que nos tinha,

Da mãe que era também para os sobrinhos…
Dos seus segredos, que não tinha pudor em revelar!
Da energia que emanava, da alegria que parecia carregar.
Já não me lembro de quando foi a última vez que a abracei,
Nem da última vez que rimos juntas… Sinto saudades!

Ainda recordo as lágrimas que começaram a escorrer-me,
Rebeldes a mim, que não queria chorar, no dia em que partiu…
Não chorei muitas,

Lutei contra a tristeza porque ela era alegria…
Porque queria que partisse sem dor…
Porque a despedida se é um fim é um recomeço!
E quando algo acaba, alguma coisa se inicia…
Visto-me de branco,
Em mim iniciou-se um caminho de saudades e memórias,
Em ti, tia, a branca eternidade.



Muitas vezes estás comigo,
Segredando-me alegrias e teimosias, impelindo-me a lutar!...
Empurrando-me para a frente com garra e energia.

Canto a vida, visto-me de branco…
Danço a branca eternidade!


Dinamene

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Identidade nacional..

Pintura: GUIDO SIEBER

...é tudo o que a história da identidade nacional vem a ser: onde passa despercebido e onde não, onde pelo contrário a pessoa sobressai. Como um polegar ferido, como dizem os ingleses; ou como uma nódoa como dizem os franceses, uma nódoa na imaculada roupa doméstica.
Não tem nada que ver com a fluência. Eu sou perfeitamente fluente como pode notar. Mas o inglês veio-me mais tarde.Não veio com o leite materno. De facto, não veio, pura e simplesmente. No íntimo sempre me senti uma espécie de boneco de ventríloquo. Não sou eu que falo a língua, é a língua que é falada através de mim. Não vem do meu
amâgo, de mon coeur...
J.M.Coetzee, O homem lento, ed.d.quixote

Saudade


Saudade é:

chamar-vos e não ter resposta;
estender os braços e não vos encontrar;
ver-vos só nas fotografias;
querer sorrisos vossos e não os ter;
ter desejo de um beijo vosso;
ficar assim, com a vossa imagem
PRESENTE em mim!

maria eduarda

Humilhação

Escolher o local,
o ambiente a preceito,
desferir o golpe mortal,
de modo a ficar desfeito.

Descarregar emoções,
no outro, em agonia,
comover os corações,
que presenciam, em azia.

O mestre, vitorioso,
com a atitude tomada,
prossegue em tom jocoso
a tão esperada cilada.

Mas, o outro ultrajado,
não se doma na arena
e, tal leão enjaulado,
ataca em plena cena.

Demonstra a inconsistência,
a ausência de verdade,
coloca na sua vivência,
uma camada de vaidade.

Uma falsa violação,
de alguém em pedestal,
que se julga em ascensão,
ser um perfeito mortal.

maria eduarda

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Pintura: GUIDO SIEBER

Foi assim que amou a mulher após não achar em vez dela uma outra, a sua preferida, a quase real e que no entanto se mantinha no limiar de alheios cuidados para consigo, como um acto carinhoso num sonho, entristecendo-se então com esse seu reparo e tentando resolvê-lo rodando o botão de programação do canal televisivo, chamando àquele gesto afoito, a busca do calor que pretendia ali haver tanto quanto a favorita mulher.
Também foi assim que o ser humano começou a olhar para si mesmo como achando-se valioso, dando por falta de coisas na sua proximidade; então os objectos foram atrelados a um estatuto similar ao dos animais domésticos, e até usurparam importâncias em relação aos últimos, porque não sujavam e só se não mantinham limpos autonomamente, não importando o tempo que ocupavam. A seguir foram inventados mais uns males de alma, decerto com cura.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Evasão

Caminho há horas,
extenuada prossigo,
em busca, sem demoras,
de um canto, um abrigo.

O destino é ausência,
falta de objectivo concreto,
entro aos poucos em falência,
neste meu querer discreto.

Busco a forma clara,
a nitidez, a aurora,
o resplandecer da tiara,
colocada em breve hora.

O canto do meu esplendor,
oculto está, disfarçado.
Avanço, ofegante,em ardor,
num querer mais reforçado.

Chego exausta, quase morta,
abandono antigos enfeites,
tapo lacunas, abro a porta,
pronta para novos deleites.

maria eduarda

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Viagem à Terra Natal


Todos nós, conta a história, nascemos com metade do coração…
Muitos não sabemos, alguns não nos importamos e a vida prossegue a meio coração, meio feliz, meio contente.
Alguns, afortunados, encontram cedo a outra parte de si mesmos e vivem vidas partilhadas por muitos e longos anos.
Maria Terra, desde nova, decidiu ir em busca da sua outra metade, do seu meio coração, do verdadeiro Amor!... Assim que teve a idade necessária para caminhos independentes, despediu-se de todos (familiares e amigos), determinada, e lá foi, meio feliz… meio contente, à procura do ser que possuía a outra metade do seu coração.
Foram muitos os rumos escolhidos, os caminhos trilhados, as terras encontradas, as gentes conhecidas…
Fez amigos, inimigos talvez, foi muitas vezes alegre, outras tantas foi triste…
Procurou, procurou, até que se esqueceu que procurava
…com tanto que a vida lhe dava!
Sentia-se meio-benzinha, meio-preenchida, meio-realizada…
Saboreava a vida com o entusiasmo necessário para não procurar mais nada.
Teve um companheiro e filhos…
Viveu momentos tão felizes que chegou a acreditar que nada podia ser mais belo que o nascimento de um filho. Outros viveu, tão dolorosos, que chegou mesmo a pensar que nada seria mais triste que a perda de um amigo…
Assim, a vida foi passando. E depressa que a vida passa…
A cara enrugando, os cabelos clareando e o meio-coração mais só… Uma vez, meio-cansado, bateu tão devagar no peito de Maria Terra que esta, ao sentir lá dentro uma dor, foi a correr refrescar-se num lago limpo e belo perto da casa onde morava…
Ao olhar o lago, Maria Terra viu, não o seu reflexo, mas o rosto do velho amigo de infância, José Mar, que já não via desde que partira em busca de si mesma…
Atónita, olhou em volta, não havia ninguém…
Perplexa, olhou mais perto no lago e percebeu que os seus olhos reflectidos eram mesmo os dele, da sua metade-coração, da outra parte de si…
Mas…. Mas… Como não tinha percebido antes?! – questionava-se…



Aquele rapaz que sempre lhe sorrira e acenara com um brilho doce no olhar… Era, então, a parte que lhe faltava???....
Com um brilho salgado no olhar, Maria Terra foi a correr até casa, com a mão no peito, para que a metade do coração que tinha não lhe fugisse e, num grito feliz, anunciou à família:
“Vou de viagem à minha Terra Natal …”
Demorou vários dias e várias noites na longa viagem de regresso e reencontro consigo mesma. Quando lá chegou, ao pôr do sol, verificou que José Mar não vivia mais na mesma casa… Branca de cal e com barra azul-mar…
Indicaram-lhe então outra casa, lá bem em cima do monte, onde vivia o homem, a sua mulher e os três filhos de ambos.
Ainda vacilou antes de iniciar a subida pelo caminho íngreme, mas ao olhar a lua redonda e grande que nascia, ganhou uma força desconhecida e lá foi, percorrendo os últimos quilómetros da sua busca de uma vida inteira, que a levavam ao destino sonhado…
Ao chegar, já noite, parou em frente à casa pequena e branca, iluminada pelo luar… A porta abriu-se e de lá surgiu José Mar, que murmurou, sorrindo e acenando…
“Há anos que te esperava. Cheguei a acreditar que não voltavas…”
Num abraço de um minuto, que pareceu durar a eternidade, Maria Terra e José Mar foram um só.
Depois, contam, cada um seguiu a sua vida, que as vidas construídas não se destroem assim, como castelo de areia à beira-mar…
A partir daquele dia, ambos sabiam que, no espaço vazio da metade do coração, habitava uma luz, sempre acesa, uma estrela, talvez o Sol, recordando-lhes que nunca mais estariam incompletos.
Ainda ouvi dizer, pela boca dos tetra netos de Maria Terra, que, por vezes, Maria Terra e José Mar se encontravam em sítio desconhecido, perto do mar…
E que, nesses dias, quem estava na praia, à hora em que o dia dá lugar à noite, podia ver de um lado a Lua Cheia a Nascer e do outro o Sol Dourado a mergulhar no mar… E ouvia-se, além das ondas a tocar na areia, um bater de tambor ritmado e alegre, um coração …e um som melodioso, talvez de uma flauta, uma canção…

Dinamene


domingo, dezembro 14, 2008

Emocional

Sentir a felicidade
com a frequência exigida.
Aclamá-la com vigor,
estonteantemente.
Querê-la em si,
em divertimento e
em contentamento.
Abrir os braços ao Mundo,
afagar o horizonte,
abraçar o envolvente.
Caminhar embriagada,
emocionada, envaidecida.
Apreciar cada gesto,
cada palavra, cada afecto.
Conquistar a seriedade,
torná-la numa aliada,
dobrá-la em risos francos.
Apoderar-se da vida,
bloquear a tristeza,
repudiar a agonia,
ludibriar o malquisto,
rejeitar a solidão.
Acolher esta vontade enorme
de transpor o muro agreste,
que nos separa da alegria .
Querê-la sempre em dia,
actual, real, intemporal!
Sentir a felicidade!

maria eduarda

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Embriaguez

Há momentos felizes,
pedaços nos nossos dias,
passagens onde somos aprendizes
em aperfeiçoar as melodias.

Essas sim, vivê-las
sem receio, em plenitude,
embriagados, sem contê-las,
extravasá-las na sua magnitude.

Ouvir o som que embala,
embeleza esta passagem,
usufruir dele, em plena gala,
reflectir nele a nossa imagem.

Dançar sempre, neste salão,
ao som dos dias, notas musicais.
Contagiar até à exaustão,
persistir, não abandonar o cais.

E, quando a melodia acabar,
transferi-la para o coração,
enebriá-lo de um outro bailar.
Para viver, há sempre uma razão!
maria eduarda

LOS NADIES

EL LIBRO DE LOS ABRAZOS (fragmento)

Sueñan las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana, ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pie derecho, o empiecen el año cambiando de escoba.


Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada.


Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos.


Que no son, aunque sean.


Que no hablan idiomas, sino dialectos.


Que no profesan religiones, sino supersticiones.


Que no hacen arte, sino artesanía.


Que no practican cultura, sino folklore.


Que no son seres humanos, sino recursos humanos.


Que no tienen cara, sino brazos.


Que no tienen nombre, sino número.


Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local.


Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.


(...)


Eduardo Galeano

Chuva, em mim…


O Inverno aproxima-se...
Vejo já o chão coberto de folhas douradas,
As árvores despidas...
Sinto o frio e a chuva!
E choro...
Aumenta-me a saudade, traz-me memórias tristes,
Chuva, também em mim...

Limpando lágrimas salgadas,
Procuro um pouco de calor,
Um raio de sol, uma lareira acesa,
Vasculho em mim recordações felizes do Inverno...
Encontro muitas...
Nascimentos, passeios, viagens, reencontros...
Encontro também um sorriso sereno…
Outro mais espalhafatoso!
Sol, então, em mim…
Porque, aqueles que amamos,
Permanecem em todas as Estações do ano,
Connosco, em memórias felizes!

Dinamene

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Frémitos

Adormeci muitas vezes,
acordei outras tantas.
Esperei que saísses do sonho
mas, entre os acordares meus,
nada aconteceu.
Então, resoluta, dormitei,
aquela sensação de embriaguês
entre estar e não estar.
Não mais te vi,
continuaste no sonho.
Talvez te acorde
quando voltar a adormecer
e, entre as pausas adormecidas,
poder ver-te como dantes,
no patamar da minha infância,
e nos degraus da minha adolescência.
Aí, poderei abraçar-te,
e ficar de ti,
com mais uma imagem,
que acrescento às outras vividas.
Eu estou por aqui,
até poder,
sempre com vontade de estar,
permanecer até conseguir,
até resistir...

maria eduarda

Dia mundial dos direitos humanos

Artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos

"Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade."

terça-feira, dezembro 09, 2008

Sobreviver

A varanda a montante
espreita o campo em flor.
Vistas largas, cores imensas
se reflectem no semblante,
dão-lhe a ela outro sabor.

Crenças vividas nela,
piamente acreditadas
em dias com mais fulgor,
de uma vontade que sela
as derrotas transformadas,
em vitórias de uma cor.

Cor que traz esperança,
o verde de qualquer folha
a raiar em harmonia.
Acreditar nessa mudança,
confiar nesta outra escolha,
ouvir vozes em sintonia.

É o apelo da vida,
que a quer nela incluída.
Não desistir, trazer alento,
mesmo que comovida,
avançar, procurar a saída,
porque o agora, já foi momento.

maria eduarda
(dedico-lhe a ela, que luta agora)

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Ambivalência

A nudez de um sorriso,
visto do lado de fora.
Por dentro, há a demora,
em transformá-lo no riso.

A vontade que insiste,
em rasgar o coração,
em colocar a emoção
num lugar que lhe resiste.

O riso , a par da mágoa,
caminham nos mesmos pés,
trilham linhas de viés,
receiam beber igual água.

Mas, a vontade aparece,
abre ao mundo o seu querer,
assim como o dia amanhece,
o sorriso entra no ser.
maria eduarda

domingo, dezembro 07, 2008

Morreu Alçada Baptista

O escritor e jornalista António Alçada Baptista morreu hoje aos 81 anos.António Alçada Baptista nasceu em 1927 na Covilhã. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Alçada Baptista tem uma vasta obra literária publicada.
Esteve também ligado ao jornalismo e à edição. Foi ainda cronista.Identificado por muitos como “o escritor dos afectos” e um defensor da liberdade Alçada Baptista foi um dos fundadores da revista “O tempo e o Modo”, que marcou gerações. Era ainda editor da Moraes Editora.Alçada Baptista foi condecorado com a Ordem de Santiago, com a Grã Cruz da Ordem Militar de Cristo pelo Presidente Ramalho Eanes e com a Grã Cruz da Ordem do Infante pelo Presidente Mário Soares.Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa, lembrou, em declarações à TSF, o “homem de causas”: “Foi um homem de causas, dos direitos do homem e da democracia. Mas temo que seja esquecido enquanto escritor para ser lembrado enquanto pessoa”.
in Público

sábado, dezembro 06, 2008

Ausência

Quando me ausentar,
não se esqueçam de mim.
Eu deixo o aroma das rosas,
a fragância da açucena,
o esplendor de um raio,
em noite de escuridão.
Quando não mais estiver,
vejam-me no vosso reflexo,
na água límpida que vos espelha.
Então, acenem-me, chamem por mim,
sorriam-me, serenos,
e aí, eu partirei em paz.
Mas, não se esqueçam de mim!
Lembrem-se do que fui,
do que quis ter sido,
mas lembrem-se!
Não apaguem essa memória!


maria eduarda

As palavras

Apanhas do chão as palavras gastas,
como frutos podres;uma a uma,
no poema, formam a frase que
nunca imaginaste, com um sentido exacto.

E vês a árvore de onde caíram,
com as suas folhas de sílabas
e os seus ramos de verso, segredar-te
um musgo de sentimento ao ouvido.

Agora, as palavras são tuas.
Envolvem-te como a hera se agarra aos muros,
e crescem por ti dentro até à alma.

Então, colhe as palavras que te enchem,
antes que caiam como frutos podres, e
oferece-as a quem passa, no cesto do poema.

Nuno Júdice, in O Breve Sentimento do Eterno

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Isso de escrever..

Não a concebo (a inspiração) como um estado de graça nem como um sopro divino,mas como uma reconciliação com o tema à força de tenacidade e domínio...todos os obstáculos caem, todos os conflitos se afastam, e ocorrem-nos coisas que não tínhamos sonhado e então não há na vida nada melhor que escrever.
Gabriel García Márquez

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Trapaceira

Na praceta da aldeia,
um banco de cada cor,
e em cada cor, a estreia,
de um velho, sem ardor.

Haja ou não luz solar,
lentamente, sem favor,
leva-o intenção de falar,
acto que o imbui de calor.

Está à espera da vida,
que esta o surpreenda.
Hoje, a mesma, atrevida,
quis deixar uma oferenda.

Passou, e olhou de soslaio,
troçando dele, zombeteira,
levou-o consigo, num ensaio.
Iludiu-o, a matreira!

maria eduarda

Qual a escola dos teus sonhos?

«Para mim, é a escola que educa os jovens para extraírem força da fragilidade, segurança da terra do medo, esperança da desolação, sorriso das lágrimas e sabedoria dos fracassos.
A escola dos meus sonhos une a seriedade de um executivo à alegria de um palhaço, a força da lógica à singeleza do amor.
Na escola dos meus sonhos, cada criança é uma jóia única no teatro da existência, mais importante que todo o dinheiro do mundo. Nela, os professores e os alunos escrevem uma belíssima história, são jardineiros que fazem da sala de aula um canteiro de sonhos. »

Augusto Cury, "Pais Brilhantes, Professores Fascinantes"

terça-feira, dezembro 02, 2008

Escrevo hoje, não o farei dia 11!

Pai,
Parece-me que foi ontem! E eu, que não aprecio frases feitas, mas esta é real, ou talvez não.
Parece-me que não foi ontem, nem nunca. Parece-me que estás aí, em tua casa ou nos teus Bombeiros.
Pois, parece-me!
Afinal, realmente, não estás!
Partiste, e eu fico sem saber para onde foste. É sempre assim, vão para longe ou perto e nada nos dizem!
Porque não queres?
Porque não podes?
Porque sim?
Porque não?
Dizem-me, a vida é mesmo assim. Assim como? A acabar assim? Será que é o fim?
Pois é, meu querido Pai, se eu tinha tantas dúvidas, desde que partiste, mais dúvidas tenho.
Dizem que toda a gente é substituível, e isso, sei-o, é mentira. Podem ser substituídos no emprego, por exemplo, mas mesmo assim há especificidade em cada ser humano que faz dele um ser único no Mundo.
Mas olha, continuo a sentir saudades de ouvir a tua voz, de ver o teu sorriso, e de ouvir uma frase dita inúmeras vezes por ti, durante o ano de 2007: "-Olá filha!"
Só não gostei que não te tivesses queixado, declarado guerra ao Mundo, à vida, a tudo.
Mas tu és mesmo assim, pacífico, humano, tolerante. Sempre encaraste os revezes que te apareceram ao longo da vida, e lutaste sempre!
Estás em falta!
Rendeste-te no final, pela primeira vez não foste capaz de lutar, e abdicaste.O Mundo estava a ruir em cima de ti, e já era difícil reconstruí-lo.
Por tudo isto Pai, és insubstituível, agora e sempre! E já agora, olha Pai, quero dizer-te também, agora e sempre:

"Olá Pai!"

maria eduarda

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil


Parece ser que aquele com quem não especializaste o teu laço humano, há-de assaltar-te no caminho como um objecto inatável que não consegues segurar na amplitude dos teus braços.

O bom dia deve ser universal, ou seja, não deverá haver nenhuma sombra nele que possa fazê-lo como que distante de alguém, que está em comum campo de audição.

Mas também parece ser que quem mimaste com as tuas chamadas intimidades, também te poderá fazer sentir cruamente derrubável.

Ao lado de um ser humano, está-se sempre a passos curtos de uma loteria.

Sobre as crianças

Outra lição das minhas horas no parque.
Simpatizo com crianças, em abstracto. As crianças são o nosso futuro. É bom para as pessoas de idade estarem rodeadas de crianças, levanta-nos o moral. E assim por diante.
Aquilo que esqueço no que toca às crianças é a incessante algazarra que fazem. Falando cruamente, gritam. Gritar não é simplesmente falar muito alto. Não é nenhum meio de comunicação, mas sim uma maneira de abafar os rivais. É uma forma de auto-afirmação, uma das mais puras que existem, fácil de exercer e altamente eficaz. Uma criança de quatro anos pode não ser tão forte como um adulto, mas é decerto mais barulhenta. Uma das primeiras coisas que devíamos aprender no percurso para nos tornarmos civilizados: não gritar.
Diário de um mau ano, J.M.Coetzee
Sim, o que é o próprio homem senão um cego insecto inane a zumbir (?) contra uma janela fechada; instintivamente sente para além do vidro uma grande luz e calor. Mas é cego e não pode vê-la; nem pode ver que algo se interpõe entre ele e a luz. De modo que preguiçosamente (?) se esforça por se aproximar dela. Pode afastar-se da luz, mas não pode ir além do vidro. Como o ajudará a Ciência? Pode descobrir a aspereza e nodosidade próprias do vidro, pode chegar a conhecer que aqui é mais espesso, ali mais fino, aqui mais grosseiro, ali mais delicado: com tudo isto, amável filósofo, quão mais perto está da luz? Quão mais perto alcança ver? E contudo, acredito que o homem de génio, o poeta, de algum modo consegue atravessar o vidro para a luz do outro lado; sente calor e alegria por estar tão mais além de todos os homens (?), mas mesmo assim não continuará ele cego? Está ele um pouco mais perto de conhecer a Verdade eterna?
Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Conheço-te, desde que me conheço!

(o meu mano Xinho )
Não posso ocupar o teu lugar,
e resolver os teus problemas.
Não posso alterar o passado,
mas posso ouvir-te,
dar-te o meu ombro amigo.
Não posso estar sempre aí,
mas estou aí!
Não tenho todas as soluções
para os teus problemas,
mas posso acalmar os teus sobressaltos.
Quando precisares de mim,
faz um sinal,
dá-me uma pista.
Eu continuo sempre à espera,
mesmo quando não precisas,
eu estou à espera.
À espera de te ouvir,
ver-te sorrir,
sempre!
Conta comigo,
afinal sempre me conheceste,
eu já existia,
e estava lá,
quando olhaste e reparaste,
viste-me sorrir,para ti,
tenho a certeza.
Continuarei,
porque é assim que farei!

maria eduarda

O Cúmplice

Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.

Jorge Luís Borges, in "A Cifra"

domingo, novembro 30, 2008

Urgentemente

É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente permanecer.

Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"

Inverno

Aprecia a natureza,
agora, fria e nua,
em toda a sua destreza,
para voltar a ser tua.

Repara na multiplicidade,
agora, paisagem diferente.
Apesar de haver unidade,
o que varia é a mente.

A alegria vem de dentro,
do modo como avalias,
do que situas no centro,
da tua atenção, mais-valias.

O Inverno não é tristeza,
é mudança, é diferença.
E tu, coloca a firmeza,
e transforma-a em crença.

Aprecia esta beleza,
também ela passageira.
Outra virá, com certeza,
também ela mensageira.

maria eduarda

sexta-feira, novembro 28, 2008

Coisas que se pensam quando qualquer outra coisa seria menos inútil

Alinhar a visão que se tem do dia, como estando numa varanda acima dele ou pela temperatura que se imagina estar, se se emudece nos olhos de alguém capaz de nos estorvar o que se nos hospeda nos pensamentos como um rochoso frio ou torcido medo de algo que ainda se não avista ou simplesmente, como fundo aborrecimento pela ficção que somos numa das ossadas do Universo.
Deve ser por causa dos arranjos que se sonham aplicar ao dia, que é sempre um de cada vez e que uma pessoa como quem vai à rua a pensar tratar daquilo que é o que a mantém em pé, se apaixona.
JL: “A Viagem do Elefante” é uma alegoria, amargamente irónica, da existência humana?
José Saramago: Sim. Todos nós damos vontade de rir. Somos uns pobres diabos. Usando um termo grosseiro: muita cagança, muita cagança e para quê? Somos pequeníssimos. Não é que uma pessoa tenha de aceitar a sua pequenez, mas parece-me bastante triste a vaidade, a presunção, o orgulho, tudo isso com que pretendemos ou queremos mostrar que somos mais do que efectivamente somos. Não será caricato ou ridículo, mas bastante triste.

quarta-feira, novembro 26, 2008

Por desatar!

A vida é mesmo assim,
cheia de nós apertados,
alguns, feitos por mim,
outros, por mim encontrados.

Quero desatá-los, totalmente,
às vezes, sem resultado,
porque outros nós, em mente,
surgem, vindos do passado.

Esses, não consigo apartar,
recordo o então já vivido,
dois vazios a retratar,
guardados, no tempo já ido.

Agora, vou prosseguir,
outros nós hão-de surgir.
Preciso de em paz estar,
para poder reagir!

maria eduarda

Limites da tolerância

Tudo tem limites, também a tolerância, pois nem tudo vale neste mundo. Os profetas de ontem e de hoje sacrificaram suas vidas porque ergueram sua voz e tiveram a coragem de dizer:"não te é permitido fazer o que fazes". Há situações em que a tolerância significa cumplicidade com o crime, omissão culposa, insensibilidade ética ou comodismo.
Não devemos ter tolerância com aqueles que têm poder de erradicar a vida humana do Planeta e de destruir grande parte da biosfera. Há que submetê-los a controles severos.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que assassinam inocentes, abusam sexualmente de crianças, traficam órgãos humanos. Cabe aplicar-lhes duramente as leis.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que escravizam menores para produzir mais barato e lucrar no mercado mundial. Aplicar contra eles a legislação mundial.
Não devemos ser tolerantes com terroristas que em nome de sua religião ou projeto político cometem crimes e matanças. Prendê-los e levá-los às barras dos tribunais.
Não devemos ser tolerantes com aqueles que falsificam remédios que levam pessoas à morte ou instauram políticas de corrupção que delapidam os bens públicos. Contra estes devemos ser especialmente duros, pois ferem o bem comum.
Não devemos ser tolerantes com as máfias das armas, das drogas e da prostituição que incluem sequestros, torturas e eliminação física de pessoas. Há punições claras.
Não devemos ser tolerantes com práticas que, em nome da cultura, cortam as mãos dos ladrões e submetem mulheres a mutilações genitais. Contra isso valem os direitos humanos.
Nestes níveis não há que ser tolerantes, mas decididamente firmes, rigorosos e severos. Isso é virtude da justiça e não vício da intolerância. Se não formos assim, não teremos princípios e seremos cúmplices com o mal.
A tolerância sem limites liquida com a tolerância, assim como a liberdade sem limites conduz à tirania do mais forte. Tanto a liberdade quanto a tolerância precisam, portanto, da protecção da lei. Senão, assistiremos à ditadura de uma única visão de mundo que nega todas as outras. O resultado é raiva e vontade de vingança, fermento do terrorismo.
Onde estão então os limites da tolerância? No sofrimento, nos direitos humanos e nos direitos da natureza. Lá onde pessoas são desumanizadas, aí termina a tolerância. Ninguém tem o direito de impôr sofrimento injusto ao outro.
Os direitos ganharam sua expressão na Carta dos Direitos Humanos da ONU, assinada por todos os países. Todas as tradições devem confrontar-se com aqueles preceitos. Se práticas implicarem violação daqueles enunciados não podem justificar-se. A Carta da Terra zela pelos direitos da natureza. Quem os violar perde legitimidade. Por fim, é possível ser tolerantes com os intolerantes? A história comprovou que combater a intolerância com outra intolerância leva à aspiral da intolerância. A atitude pragmática busca estabelecer limites. Se a intolerância implicar crime e prejuizo manifesto a outros, vale o rigor da lei e a intolerância deve ser enquadrada. Fora deste constrangimento legal, vale a liberdade. Deve-se confrontar o intolerante com a realidade que todos compartem como espaço vital. Deve-se levá-lo ao diálogo incansável e fazê-lo perceber as contradições de sua posição. O melhor caminho é a democracia sem fim que se propõe incluir a todos e a respeitar um pacto social comum.
Leonardo Boff

Todo o Mal Provém não da Privação mas do Supérfluo

Ser feliz é, afinal, não esperar muito da felicidade, ser feliz é ser simples, desambicioso, é saber dosear as aspirações até àquela medida que põe o que se deseja ao nosso alcance. Pegando de novo em Tolstoi, que vem sendo em mim um padrão tutelar, lembremos de novo um dos seus heróis, o príncipe Pedro Bezoukhov (do romance 'Guerra e Paz'). As circunstâncias fizeram-no conviver no cativeiro com um símbolo da sabedoria popular, um tal Karataiev. Pois esse companheirismo desinteressado e genuíno, esse encontro com a vida crua mas desmistificadora, não só modificaram o príncipe Pedro como lhe revelaram o que ele precisava de saber para atingir o que nós, pobres humanos, debalde perseguimos: a coerência, a pacificação interior, que são correctivos da desventura.
Tolstoi salienta-nos que Pedro, após essa vivência, apreendera, não pela razão mas por todo o seu ser, que o homem nasceu para a felicidade e que todo o mal provém não da privação mas do supérfluo, e que, enfim, não há grandeza onde não haja verdade e desapego pelo efémero. Isto, aliás, nos é repetido por outra figura de Tolstoi, a princesa Maria, ao acautelar-nos com esta síntese desoladora: «Todos lutam, sofrem e se angustiam, todos corrompem a alma para atingir bens fugazes».
Fernando Namora, in 'Sentados na Relva'

terça-feira, novembro 25, 2008

Acreditar

Ver-se ao espelho amiúde,
olhar nos olhos, os sonhos.
Tentar que o gesto não mude,
manter os lábios risonhos.

Fixar no reflexo, a imagem,
de alguém que se desdobra,
numa outra personagem,
cuja coragem recobra.

Avançar nesta conquista,
acreditar em cada passo,
no troféu bem realista,
alcançado sem fracasso.

maria eduarda

5º Pergunta

Quase arriscaria dizer que há homens que são mais orgulhosos do que outros porque engoliram certos versos, se isso existe- e acredito que sim, senhor Breton-é porque os versos quando digeridos, se decompõem em fragmentos que esquecemos, mas também numa energia que nos torna bípedes mais lúcidos. Como se a nossa cabeça estivesse mais perto de tocar o sol.
Será isso senhor Breton?
in: GonçaloM.Tavares, O senhor Breton e a entrevista, Caminho,2008

E que mais necessitam as nossas crianças, adolescentes e famílias?

" ....Cidades, bairros e habitações de escala mais humanas, em que a relação com a natureza seja uma constante e não uma raridade ou uma mera questão de luxo. A actual (des)organização ambiental constitui um sério ataque à saúde mental das populações e tem tudo a favor para produzir um impacto grave no bem-estar dos mais novos e suas famílias."
Pedro Strecht in Jornal Público, 2005

segunda-feira, novembro 24, 2008

"Mr. PIP"

«Era quase madrugada quando ouvimos os helicópteros dos peles-vermelhas passarem sobre a aldeia e depois regressarem. Pairaram sobre nós como libélulas gigantes, inspeccionando a clareira. Viram uma fila de casas abandonadas e uma praia vazia, pois nós fugíramos. Toda a gente. [...] O bloqueio fora imposto na primeira metade de 1990. Julgámos que seria apenas uma questão de tempo até que o mundo exterior viesse ajudar-nos.» Sem surpresa, o mundo exterior tinha mais em que pensar. Um dia, já na Austrália, Matilda descobre que Mr. Watts lhes lera (a ela e às outras crianças) uma versão simplificada daquilo que considerava «um som novo no mundo». A seu modo, as palavras de Dickens tinham instaurado uma ordem nova no tumulto de Bougainville. Agora, na biblioteca da escola de Townsville, exemplar na mão, «sublinhando cada palavra de cada frase com a ponta do dedo», Matilda percebera. Percebera que Mr. Watts lera «uma versão diferente, uma versão mais simples. Pegara nas partes mais importantes de Grandes Esperanças e simplificara as frases, chegara a improvisar, para nos ajudar a chegar a um lugar mais definido nas nossas mentes. Mr. Watts reescrevera a obra-prima de Mr. Dickens.» A partir dali seria com ela, teria de ser Matilda a descobrir o porquê das omissões de Mr. Watts. A desenvoltura narrativa permite-lhe manter o fôlego discursivo num plano estritamente ficcional, jogando com as várias peripécias da realidade (o conflito armado desencadeado pelo controlo das minas de cobre da ilha) e as expectativas de ascensão social de Matilda, que no fim da história decide partir para Inglaterra.

domingo, novembro 23, 2008

Aceitação

Acordaste,
olhaste à tua volta,
e só te alcançaste a ti.
Estás só!
Não tenhas medo!
O teu mundo continua a sê-lo,
se bem que mais pequeno,
limitado,
mas é o teu mundo!
Coloca-o dentro de ti,
tira-o do frio do Inverno,
aconchega-o, aquece-o.
Quando sossegares,
parte a parede e solta-o,
deixa-o apoderar-se do tempo,
revigorar-se.
Então, inclui-te nele,
enfeita-o com vontades,
pinta-o de quereres.
Depois, abre a porta,
deixa entrar quem vem.
Serve-lhes tolerância e um sorriso,
Então, sossega!
Não tenhas medo!

maria eduarda

sexta-feira, novembro 21, 2008

Da existência de Deus

Os argumentos relativos ao problema da existência de Deus têm sido viciados, quando positivos, pela circunstância de frequentemente se querer demonstrar, não a simples existência de Deus, senão a existência de determinado Deus, isto é, dum Deus com determinados atributos. Demonstrar que o universo é efeito de uma causa é uma coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente é outra coisa; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente e infinita é outra coisa ainda; demonstrar que o universo é efeito de uma causa inteligente, infinita e benévola outra coisa mais.
Importa, pois, ao discutirmos o problema da existência de Deus, nos esclareçamos primeiro a nós mesmos sobre, primeiro, o que entendemos por Deus; segundo, até onde é possível uma demonstração.
O conceito de Deus, reduzido à sua abstração definidora, é o conceito de um criador inteligente do mundo. O ser interior ou exterior a esse mundo, o ser infinitamente inteligente ou não — são conceitos atributários. Com maior força o são os conceitos de bondade, e outros assim, que, como já notamos têm andado misturados com os fundamentais na discussão deste problema. Demonstrar a existência de Deus é, pois, demonstrar, (1) que o universo aparente tem uma causa que não está nesse universo aparente como aparente (2) que essa causa é inteligente, isto é, conscientemente activa. Nada mais está substancialmente incluído na demonstração da existência de Deus, propriamente dita.
Reduzido assim o conteúdo do problema às suas proporções racionais, resta saber se existe no raciocínio humano o poder de chegar até ali, e, chegando até ali, de ir mais além, ainda que esse além não seja já parte do problema em si, tal como o devemos pôr.
Fernando Pessoa, in 'Ideias Filosóficas'